VISTO DE FORA

A história do hospital em Gaza

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por Tiago Franco // Outubro 19, 2023


Categoria: Opinião

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O bombardeamento do hospital em Gaza tem tudo o que precisamos para um bom enredo conspirativo. Adianto-vos que não contribuirei para esse peditório, mas, como tudo nesta vida, as argumentações deixam-me a pensar. A história fez-me lembrar, por momentos, a discussão em torno da explosão do gasoduto “Nord Stream”, atribuído a russos, americanos e agentes europeus da NATO. Já passou um ano e não se chegou a lado nenhum que não fosse um enredo de novelas da conspiração.

No caso do hospital em Gaza, pessoalmente acredito em qualquer cenário: acidente do Hamas ou falha não assumida de Israel. E são 500 mortos ou 50? Importante mesmo é que mais umas dezenas de inocentes, ainda por cima a receber assistência, foram vitimados por esta guerra. Por vezes, no meio desta passagem de culpas e troca de estatísticas, parece-me que nos esquecemos que a única coisa indiscutível é a morte diária de civis inocentes.

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Vou no quarto texto seguido sobre este tema aqui no PÁGINA UM e, ao fim de 10 dias de bombardeamentos, as mortes ascendem a 4.000 entre palestinianos, com cerca de 12.000 feridos. O lado israelita mantém-se estável desde os primeiros dias do conflito, com cerca de 1.200 mortos. É, aliás, curioso que enquanto se discute diariamente o direito de Israel a defender-se, os bombardeamentos e mortes não param de aumentar na Faixa de Gaza. Quem ouve os debates imagina que a invasão terrestre é que trará o “direito à defesa”, mas esse, juntamente com a vingança mais do que assumida, está em curso a cada hora que nos sentamos a ouvir os relatos e as diferentes narrativas.

Reparem como o ciclo de qualquer guerra se repete e, essencialmente, se ganha não só no terreno mas também na comunicação. Lembrar-se-ão, certamente, dos périplos que Zelensky fazia um pouco por todo o Mundo Ocidental em busca de apoio para a causa ucraniana, referindo sempre um momento histórico marcante do país que o recebia. Ontem, Benjamin Netanyahu, dirigindo-se a Rishi Sunak, o primeiro-ministro inglês, disse-lhe que o “Mundo esteve com Inglaterra na sua hora mais negra [referência aos ataques alemães na II Guerra Mundial] e que, agora, Israel esperava o mesmo do Mundo.

Importa criar condições para continuar a ocupar um território, aprisionar e matar indiscriminadamente, sem passar a bárbaro e/ou terrorista. Graças ao apoio norte-americano nas Nações Unidas, na vertente bélica e financeira, esse papel por parte de qualquer Governo israelita é não só possível como bem real. Os restantes do chamado Mundo Ocidental, com o Reino Unido à cabeça, limitam-se a seguir as indicações da potência dominante. Eis como funciona o Mundo neste conflito.

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Ainda assim, e voltando ao início, há coisas que eu não percebo, e como também certamente nunca terei hipótese de perguntar a quem de direito, escrevo aqui. Há meses que a Europa e os Estados Unidos afirmam que esgotaram as suas reservas de armas e munições e, por isso, a Ucrânia teria de esperar. Mas mal rebentou a primeira bomba em Gaza, os Estados Unidos começaram a fornecer armas e munições a Israel, o que resultou na demissão de uma alta patente no Governo de Biden, em forma de protesto por mais este despejar de ‘gasolina’ no Médio Oriente. Provavelmente, algures nos confins do Pentágono, há uma despensa maior para as eventualidades em Gaza.

Outra dúvida que me assalta é a falta de contraditório à argumentação israelita. A história do rocket falhado pela Jihad Islâmica (nem foi o Hamas) que caiu no parque de estacionamento do hospital já corre Mundo. A Jihad Islâmica negou que tenha lançado qualquer rocket e, um pouco por toda a parte, os israelitas contam uma história afinada sobre um míssil que não era deles.

No caso português, arranjaram um major que falava espanhol e que foi “entrevistado” pela Helena Ferro de Gouveia para nos contar a versão oficial de Israel. “Entrevistar” é uma força de expressão, porque durante seis minutos o senhor falou sem que lhe fizessem qualquer pergunta. Foi mais um tempo de antena. Entre outras coisas, disse ele que nos radares israelitas não havia qualquer bomba enviada para aquela zona.

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Não digo que esteja a mentir, note-se, mas é como aqueles vistos que preenchemos para entrar nos Estados Unidos onde nos perguntam se andamos envolvidos em actividades terroristas.
Parece-me uma dose de fé excessiva, esperar que um terrorista se identifique como tal. Mais ou menos o mesmo que esperar que um exército que envia uma bomba que acaba num hospital, ir a seguir a correr mostrar imagens de radar com a mesma. É a história da raposa que guarda o galinheiro.

Disse ele também, o nosso major que falava espanhol, que uma das provas era uma comunicação interceptada entre dois membros do Hamas que discutiam a gaffe com o lançamento do rocket a(de outro grupo que não eles). Uma vez mais, também pode ser verdade. Se eu estivesse no lugar da Helena, ter-lhe-ia perguntado qual era o operador telefónico que garantiu a chamada entre os dois terroristas. Num território onde a luz falha e, de todos os operadores telefónicos, já só sobra um com antenas operacionais e a 60% da sua capacidade, seria curioso fazer um fact check mínimo. Mas não era para isso que a nossa Helena estava lá e também ninguém se vai aborrecer por causa disso. O senhor pode estar a falar a verdade, notem. Mas aparentemente, esta história é aceite sem que uma equipa independente esteja no terreno a averiguar.

Há ainda outra frase que me anda aqui a beliscar a orelha e que fui ouvindo ao longo da semana – e não é nova nem original, e repete-se a cada conflito em Gaza ou na Cisjordânia: “Se nem os vizinhos os querem é porque não são boa coisa”, assim dito por populares, anónimos e comentadores com alguma responsabilidade, a propósito de Egipto e Jordânia se recusarem a receber refugiados.

Ora, meus amigos, e por que razão deveriam os vizinhos abrir as portas para mais refugiados? Acharão porventura que já lá terão poucos? Desde que a ocupação israelita começou, cerca de 1,4 milhões de palestinianos mudaram-se para campos de refugiados espalhados entre Síria, Líbano, Jordânia e os próprios territórios ocupados em Gaza ou na Cisjordânia. E dali nunca mais saíram. Portanto, que motivo teriam os vizinhos para continuar a contribuir para o sucesso da invasão israelita? O que se devia discutir não é para onde os palestinianos devem ir, mas sim, porque necessitam de ir seja para onde for?

Não haverá paz até que se criem os dois Estados e não há dois Estados com apenas uma potência dominante. Aqueles que ficaram felizes com o enfraquecimento da Rússia, escusam de chorar agora pelas milhares de crianças que vão morrendo em Gaza. Repito aquilo que disse em textos passados sobre o conflito no Donbass: não existem impérios bons ou maus, só existem impérios. E pior do que ter duas ou três super-potências, é claramente ter apenas uma a decidir por todos.

Tiago Franco é engenheiro de desenvolvimento na EcarX (Suécia)


N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

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