Visto de fora

A ‘nossa’ solidariedade selectiva parece racismo

person holding camera lens

por Tiago Franco // Março 13, 2022


Categoria: Opinião

minuto/s restantes


A rapidez com que mudamos o rumo do debate é usain-bolteana. Nós, portugueses, entenda-se.

O tema pode mudar, mas os lados não. Dois. Hoje e sempre. Só há hipótese de haver um debate público se houver dois, dois lados, um a defender o preto, o outro o branco. E se quiseres, camarada, falar em cinzento, esquece; tens que escolher um lado nesta discussão binária. Somos todos informáticos num mundo de 0 e 1, e ninguém nos contou.

A discussão desviou-se um pouco do palco de guerra – onde o desfecho parece mais ou menos inevitável – e seguiu para o como, o quando e o porquê da ajuda humanitária.

E eu tenho lido um rol argumentativo que me transtorna, especialmente quando escrito por pessoas que considero inteligentes.

Everyone is Welcome signage

Há hoje, e novamente, uma espécie de proibição no ar sobre o debate em torno da origem dos emigrantes. Uma vez mais, devemos ser solidários com o actual conflito, e esquecer os restantes. Caso contrário, apoiamos a invasão, como se perceberá.

Com o devido respeito, este é o tipo de argumentação que, além de pobre, deve ser direcionada para sítios onde o sol brilha pouco. Refiro-me à Sibéria e seu nevoeiro, obviamente.

Acho muito bem que a União Europeia integre a Ucrânia – embora a versão “expresso” sejam uns tortuosos cinco anos –, e aprecio ver como toda a Europa se junta em donativos, em acolhimento e em todo o tipo de ajuda humanitária. Tento também ajudar, é o mínimo que podemos fazer, seguros no conforto de casa – chama-se a isso solidariedade entre povos.

Não me venham é, depois, dizer que vendo toda esta iniciativa em torno de uma guerra, que dura há 15 dias, não posso questionar as políticas europeias de acolhimento das últimas décadas.

Posso. E devo.

Quem vem com o paleio do whataboutismo, quando se fala de outros refugiados, tenta reduzir o debate com um insuportável “então, como não ajudámos os outros, agora não podemos ajudar estes?”.

Sim, podemos. Podemos. E devemos. Mas temos que discutir por que razão ajudamos estes e não queremos saber dos outros. É uma discussão legítima, e que deve ser aberta.

E não estamos a debater refugiados do passado. Estamos a falar sobre refugiados de hoje. Por exemplo, crianças palestinianas que nascem, crescem e morrem em campos de refugiados na Jordânia. Ou migrantes que chegam às costas de Itália ou da Grécia, e que são imediatamente recambiados para África. Ou outros que tentam trepar as grades nos territórios ocupados por Espanha em Marrocos. Ou os afegãos que vendem rins para meter comida na mesa. Ou os sírios que chegam às portas da Escandinávia, e são enviados para o Ruanda.

Dizem-me que refugiados de guerra não são migrantes… Bom, é verdade. Mas não são essencialmente pessoas que fogem da fome, da miséria, das guerras de clãs, da escassez, no fundo, da morte? Que diferença há entre um ucraniano que foge de Kiev e um maliano que depende da vontade de um senhor da guerra para ter acesso a água potável? Não tentam ambos conservar a vida?

Palestinianos em guerra contra o invasor desde que se lembram, ou afegãos invadidos por tudo o que é gente desde a década de 80, não estão em situações semelhantes há décadas?

Sim, estão. Qualquer pessoa percebe o óbvio e os porquês. A Europa abre as portas a uns e fecha-as a outros. É uma opção, uma escolha. E uma clara distinção entre povos.

boy showing hand with rubber

A solidariedade existe, mas não se destina a todos de forma igual. E o que me enerva verdadeiramente na discussão em Portugal é a tentativa de arranjar justificações, protocolos, regras, burocracias, estatutos, que justifiquem uma coisa muito simples chamada racismo.

Não é necessário, torna-nos um pouco mais ridículos e parece que tentamos chamar estúpido a quem nos ouve. Há apenas que assumir o óbvio que passa, entre outras coisas, por manter a maior parte das portas da Europa aberta aos seus povos, e meter um travão aos migrantes e refugiados que venham de países árabes ou africanos.

Na Suécia essa posição foi assumida, no canal do Estado por Ulft Ktistersson, o Rui Rio cá do sítio. Num país com uma enorme tradição de receber refugiados – julgo que desde a década de 70 –, há uma clara diferenciação da direita, neste momento, entre receber ucranianos ou árabes e africanos. É mais ou menos isto que quem reduz o debate em Portugal ao whataboutismo faz. Racismo encapotado.

Façam então como o Ulf: abracem a solidariedade selectiva. Louros e brancos, tudo bem. Pretos e árabes, de momento já preenchemos a quota.

Engenheiro de desenvolvimento na EcarX (Suécia)


N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

O jornalismo independente DEPENDE dos leitores

Gostou do artigo? 

Leia mais artigos em baixo.