Em Dezembro do ano passado, após ver-me obrigado a recorrer ao Tribunal Administrativo de Lisboa para aceder a documentos em posse da Ordem dos Médicos, publiquei um artigo de investigação que revelava as negociações, à margem das normas da DGS, entre a Ordem dos Médicos e o almirante Gouveia e Melo para a vacinação de médicos não-prioritários em Fevereiro de 2021. Além de ser ilegal, estávamos perante uma grave falha de ética, até porque, semanas antes, Gouveia e Melo substituíra Francisco Ramos por irregularidades similares no programa de vacinação contra a covid-19, que então se iniciara num (então) cenário de escassez de doses.
O artigo intitulava-se “Gouveia e Melo ‘mercadejou’ administração de vacinas a médicos não-prioritários uma semana após tomar posse na task force”, tendo como antetítulo “Factura ao Hospital das Forças Armadas associada a donativos não declarados de farmacêuticas à Ordem dos Médicos”. Como baseado em documentos, mostrados à luz das normas em vigor e às competências que então o actual Chefe de Estado-Maior da Armada detinha, se tivéssemos num país decente, aquele conjunto de artigos que então se publicou no PÁGINA UM daria mais do que um (nunca mais concluído) inquérito da Inspecção-Geral das Actividades em Saúde (IGAS).
Mas como estamos num país indecente, o almirante Gouveia e Melo viu na Comissão da Carteira Profissional de Jornalista (CCPJ) uma excelente guarita para descredibilizar, não apenas o meu trabalho, como também para me punir.
E assim, munindo-se de recursos humanos da Armada – o Almirante Gouveia e Melo mandatou o seu próprio porta-voz para apresentar uma queixa contra um jornalista sobre um assunto que nada tinha a ver com as suas funções militares –, a sua queixa foi recebida de braços abertos por dois dos membros do Secretariado da CCPJ, que lestos concluíram que eu fizera “acusações sem provas”.
E foi-me aberta instrução, dirigida por um jornalista do Correio da Manhã com responsabilidades editoriais no CMTV. Instrução à qual, formalmente, me pronunciei em Agosto passado, segundo normas do Direito Administrativo, porque a CCPJ rege-se por normas legais, e não pelas chico-espertices e demais safadezas da quadrilha (N.B.: não é a primeira acepção do termo na Infopédia) que integra o Conselho Deontológico do Sindicato dos Jornalistas.
Andava eu, curioso, em saber que sairia da instrução do meu processo disciplinar, e eis que recebo hoje o seguinte e-mail da CCPJ, que transcrevo na íntegra (com negritos da minha responsabilidade):
“Incumbe-me a Secção Disciplinar desta CCPJ de informar V. Exas. do despacho emitido por essa Secção e que a seguir se transcreve:
‘Encontra-se a decorrer a instrução do processo disciplinar nº 1/2023, sobre possível infração do dever previsto na alínea c) do nº 2 do artigo 14º do Estatuto do Jornalista, punível com uma das sanções disciplinares previstas no artigo 8º do Estatuto Disciplinar dos Jornalistas, contudo, como:
- Os factos foram praticados em data anterior a 19 de junho de 2023;
- Os factos imputados não integram a prática de qualquer ilícito penal;
- As sanções aplicáveis não são superiores a suspensão ou prisão disciplinar.
(Artigo 6º – amnistia de infrações disciplinares e infrações disciplinares militares)
Entende-se estarem reunidos todos os requisitos para que o presente processo disciplinar seja abrangido pela amnistia concedida pela Lei n.º 38-A/2023, de 2 de agosto, publicada no D.R. n.º 149/2023, 1.º suplemento, série I, de 2/8/2023, págs. 2 a 7 (por ocasião da realização em Portugal da Jornada Mundial da Juventude).
Face ao exposto, e para que o procedimento disciplinar possa ser considerado extinto, vem a Secção Disciplinar perguntar a V. Exa. se não se opõe ao encerramento do processo por aplicação da referida Lei.“
A minha resposta só poderia ser a seguinte:
“Tendo sido informado de que, estando a decorrer a instrução do processo disciplinar nº 1/2023, no decurso de uma queixa do Chefe de Estado-Maior da Armada, Almirante Gouveia e Melo (que os membros do Secretariado da CCPJ, lestos, consideraram ser merecedor de infracção disciplinar, mesmo estando os factos por mim relatados a serem alvo de uma inspecção da Inspecção-Geral das Actividades em Saúde), sou agora informado de um despacho emitido pela Secção Disciplinar propondo a extinção do processo ao abrigo da amnistia concedida pela Lei nº 38-A/2023.
Como não necessito de amnistias para defender, como jornalista, o meu trabalho que, ainda mais neste caso em concreto, reputo de rigoroso e pertinente, não poderia jamais aceitar que a CCPJ pudesse deixar no ar qualquer dúvida sobre essa matéria, pelo que aguardava com interesse a finalização da instrução do processo disciplinar.
Donde, nem sequer agradecendo a V. “oferta”, como presente envenenado, serve a presente missiva para esclarecer que, OBVIAMENTE, oponho-me à extinção do processo disciplinar, reiterando, contudo, que a instrução não se prolongue ad aeternum. A única decisão que me satisfará é o arquivamento por ausência de quaisquer indícios de violação das normas previstas no Regulamento Disciplinar. Não preciso de outros ‘empenhos’.”
Na verdade, poderia ter sido mais sintético, e respondido com o título deste editorial: “Metam a amnistia onde o sol não brilha”.