ARQUITECTURA DOS SENTIDOS

Gasómetro

brown and blue wallpaper

por Mariana Santos Martins // Novembro 22, 2023


Categoria: Opinião

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Algures, em incerto ano do passado século, foi-me oferecido um gasómetro dourado em miniatura. Era a Casa da Malta a querer brindar as visitas com uma homenagem aos mineiros, aqueles seres alumiando-se em modo periclitante, passo a passo, terra preta, buraco, carvão, antracite.

Se uma luz é ajustada, diminuída, tão levemente, tão compassadamente, descendo e ensombrando a realidade, quem tenta ler letras mais pequenas, por entre o escuro, começa a duvidar da sua própria sanidade. Se uma luz é questionada, tão simplesmente, tão timidamente, por quem tenta perscrutar através da noite, o maquiavélico que manipula o gasómetro sorri, escarnece, desdenha da percepção.

E ai ai ai – se quem duvida do gasómetro se exalta! Tremores abalarão a mina, poeiras soltam-se contra os olhos, podendo até ficar soterrado o corpo no buraco (terra preta, carvão, antracite).

O gasómetro dourado foi viver para uma prateleira de madeira. Como lembrança de luz ajustável. Como lembrança da pouca luz que existe nos buracos mais fundos.

É uma arte.

Os maquiavélicos dominam essa arte.

Reduzem muito ligeiramente a luz nos dias pares. Aumentam-na nos dias ímpares.

E ai ai ai – se questionarmos que algo se passa com a luz; seremos loucos. Loucos! Desvairados.

De quando em vez a alucinação é colectiva – muito embora não seja alucinação, e muito embora até possa não ser colectiva (como pode tal, não, como pode, eu sozinha pensei assim!)

Conformem-se.

Está toda a gente a ver. Conformem-se.

Está toda a gente a ouvir. Conformem-se.

Calem-se!

Shhhhhhhu…

Nada mais sufocante do que descer o buraco da mina (terra preta), o gasómetro a finar-se, e toda a gente a respirar no nosso pescoço. Decide, decide depressa. Não há qualquer direito a desobediência. O menino é malcriado, o menino é pequeno-burguês, o menino pertence a uma classe sem futuro histórico…

Eu sou parvo ou quê? Quero ser feliz porra!

O mundo envolto em redes onde todos estamos embrulhados em fios de seda invisíveis é a teia perfeita para apanhar todos os insectos que ousem nela pousar. Um pequeno vibrar no fio e a aranha desenha a geometria perfeita para enredar a nossa sanidade.

Palavras, bonecos, regurgitações de spin doctors, factos elegantemente embrulhados em fita de cetim azul, prontinhos a partilhar, divulgar, informar. E todos correm a imitar o comportamento “declaro que não aceito que o Facebook utilize as minhas informações”, e entram na listinha algorítmica dos meigos, às vezes até dos meigos que, por momentos, duvidaram, pois que “um advogado recomendou na televisão que eu declare que não aceito que o Facebook utilize as minhas informações”, outros até que levantam sobrolho e fincam pé enquanto cofiam o bigode e entram na listinha algorítmica dos narcisos resistentes, pétalas amarelas (como o gasómetro).

brown rocks

Bem-aventurados os pobres de espírito, porque deles é o Reino dos céus; bem-aventurados os que choram, porque eles serão consolados; bem-aventurados os mansos, porque eles herdarão a terra; bem-aventurados os que têm fome e sede de justiça, porque eles serão fartos; bem-aventurados os misericordiosos, porque eles alcançarão misericórdia; bem-aventurados os limpos de coração, porque eles verão a Deus; bem-aventurados os pacificadores, porque eles serão chamados filhos de Deus.

Darwin ainda não existia quando os pastores proferiram estas palavras. A Natureza ainda não nos era clara ou acessível. Entretanto, de pastores e lobos o mundo ficou cheio, e as ovelhas têm de decidir, de novo, se aceitam sepultar esperanças em urnas, ou se arriscam sair do cercado.

O mundo é um circo, um palco, um lugar comum.

Entretanto as silhuetas de casas velhas cortam o horizonte e ocultam a fuga. Melhor esquecer o gasómetro e tactear às escuras. Seguir com o faro, com o instinto que os nossos olhos nos impedem de ver.

Mariana Santos Martins é arquitecta


N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

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