Acordar com um pressentimento dói nos músculos, talvez pelas corridas pela noite (assim deitados), e cada movimento que se segue anuncia-nos esses apertões, espalmados, doridos.
Agora, ao acordar, o dia será atravessado por gestos, parece que veremos os nós orientando os nossos membros em vectores, penosos, (pre)sentimentos pesando na vontade, e transformar-nos-ão não em massa mas em mero contorno, pequena bolha articulada em diagonais e tangentes vazias.
Até o som entra como um desenho por dentro (de nós) e ficamos em pausa, (pre)sentimentos que se suspendem numa dúvida, numa hesitação sobre a realidade (acordaste verdadeiramente?), e se calhar é melhor ir já comprar velas, pois entre o gás russo, a tempestade solar e o apagão estratégico (do poder), pouco falta para uma consoada cozinhada em fogareiro; e entre isso e a sensação sobre a irrealidade dos últimos anos, das compotas trocadas na porta de entrada e da prisão domiciliária (ainda a falar nisto?). E tudo parece possível neste declínio inexorável de tudo o que se ergueu, até a reencarnação do Kissinger.
Pressentimentos.
Assim, como aquilo que se sinta antes de sentir, a onda de choque do soco antes do punho rasgar o caminho (vectores) em direcção ao nosso estômago. Pôr em causa tudo. Antes mesmo de acontecer.
Consentimentos.
Quando mesmo a nossa mente subconsciente lê os padrões em volta, os contornos, as linhas que orientam o pulsar ténue dos cubos de granito na calçada, os ritmos, as rotinas, temos uma última oportunidade para dar ou retirar o consentimento.
O consentimento de agirem sobre nós, de coagirem contra nós, de reagirem contra (nós).
Basta dizer baixinho lá no fundo do nosso ser, onde na verdade nunca mais ninguém chega, às vezes nem a nossa visão chega lá, mas o som chega: não consinto. E com este singelo passe de mágica, o muro fica erguido. E com este singelo reconhecimento, desse fundo do nosso ser, vai ser difícil apanharem-nos de novo; como poderiam, se agora conseguimos ver melhor, e mesmo que não saibamos sequer o que se vê, certamente sabemos que está lá.
As palavras são a força mais poderosa em cima deste planeta. Têm mais peso que a locomotiva, mais amplitude que as asas do avião, deixam mais pegadas que todas as botas de tropa a dizimar pedras (e carne) em poeira.
E as palavras são nossas, sempre nossas, mesmo que se escondam lá no fundo do nosso ser, e mesmo que nos embrulhem e atem os pulsos com palavras alheias, nesse fundo nós sabemos que a diferença, as nossas e as dos outros, nunca se misturam.
Os chavões e a propaganda são contornos de diagonais e tangentes vazias, bonitinhas, rápidas de comer, mas vazias, sem digestão, sem transmutação em pedra, em sólido, em valor.
Eu, que não sou escritora, gosto muito de escritores, dizem palavras que são minhas e não lhes emprestei, mas eles pressentiram-nas por aí, em ti, em mim, em tantos de nós. Se lhes mastigo parágrafos e versos, consigo digerir, e a transmutação (em pedra, em sólido, em valor) acontece, porque lhas ouvi como som dentro de mim, aquele som que chega ao fundo do nosso ser, onde a visão não alcança, porque a luz não acontece, tarda, demora, e o tempo (sempre o tempo) atrasa-se a acontecer.
Mas o som, invisível, que ouço e pressinto dentro da minha cabeça, quando vos leio, esse chega sempre a todo o lado, não está dependente de velocidade ou distância. Existe. Apenas.
Mariana Santos Martins é arquitecta
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