Embora tente ser uma pessoa “moderna” tenho de confessar que o facto de ser um genuíno português, por vezes, me leva a seguir tradições que alguns estrangeiros consideram condenáveis.
Uma delas, que me tem merecido várias críticas, é ser aficionado. Gostar de touradas.
Outra, que agora muitos criticam, é condescender com a “cunha”.
Tem havido algumas tentativas para acabar com a primeira, com pouco sucesso, felizmente.
Quanto à segunda, estou tranquilo.
A “cunha”, mais do que uma tradição, é uma instituição no meu País.
Não há um único português que não a use com frequência.
A “cunha” não é, aos nossos olhos, um acto de corrupção.
É um pedido de amigo, um “amiguismo”, uma troca de favores.
A maioria das “cunhas” não se paga. Troca-se.
Ninguém diz, quando consegue a “cunha”, muito obrigado.
Diz: “Fico a dever-te uma!”.
Isto porque, é sabido, entre amigos “uma mão lava a outra!”. Ou, de outro modo, hoje tu por mim e, amanhã, eu por ti.
Os estrangeiros, que são pouco solidários e nada habituados a favores que não sejam pagos e de imediato, não compreendem este nosso costume.
Claro que há diversas formas de “cunha”, desde o pedido de emprego para o filho “que acabou de se licenciar, é uma inteligência e está numa caixa de um supermercado”, à tentativa de conseguir uma “casa da Câmara”.
Ninguém pensa pagar, com dinheiro, ao amigo que o ajude a alcançar esses objectivos.
Fica em dívida e pronto a retribuir à primeira necessidade daquele.
A “cunha” é, por isso, uma troca de favores.
Por tudo o acima dito, considero muito exagerado o alarido que se tem feito ao caso das gémeas.
De início pensei que toda a revolta vinha do facto das crianças não serem portuguesas. Depois que soube que as mesmas estavam naturalizadas, ainda que à custa de “cunhas”, fiquei do lado delas e dos pais.
Por duas crianças doentes os pais devem fazer tudo. Mas, aqui, tudo é mesmo TUDO.
Se há situação onde a “cunha” se justifique é esta.
De tal modo que, no lugar deles, tentaria que esta fosse o mais forte possível.
Foi, segundo parece, o que aconteceu.
E, há que reconhecer, os pais foram inteligentíssimos, no percurso que seguiram.
Falaram com uma Senhora (as mulheres nunca negam uma ajuda a uma criança doente), com Poder, nora do Presidente da República de Portugal, no sentido de conseguirem um medicamento que podia ser a solução para a cura.
O facto deste ser caríssimo (quatro milhões de euros) não podia ser obstáculo atendendo que podia representar a sobrevivência de duas crianças.
A Senhora falou com o marido e, todos os portugueses sabem, este só tem que obedecer aquilo que, por simpatia, chamamos “pedido”.
O filho falou com o pai.
O pedido de um filho raramente é recusado (principalmente se não traz custos financeiros avultados para aquele).
Acresce que o filho é, para mais, “doutor”. Esta palavra, em Portugal, impõe respeito. Obriga a vénia. Impede o não.
Obviamente que a “cunha” do casal brasileiro, felizmente, resultou e as crianças tiveram o seu medicamento.
E mais umas cadeiras de rodas, e uns andarilhos.
Tivessem pedido o Hospital e, hoje, este estaria em seu nome.
Só que, como está provado, os pais das meninas são inteligentes e não cairiam nesse disparate.
E não se pense que esta hipótese é inverosímil porque não seria a primeira vez que um Presidente da República meteria uma “cunha” pela entrega de um edifício público. Basta lembrar o então Pavilhão Atlântico…
Estou, por isso, ao lado do Presidente, do Sr. Dr. Nuno Rebelo de Sousa, da Esposa deste e de todos os que permitiram a entrega dos medicamentos desde a Ministra ao médico que os administrou.
Mais, critico veementemente todos os que, agora, para mais em época de eleições, se armam em defensores do erário público.
Aquele que nunca meteu uma “cunha”, ou dela beneficiou, que atire a primeira pedra.
Sei que todo este alarido não vai dar em nada.
Se chegar a Tribunal, o que duvido, alguém meterá uma “cunha” para que seja arquivado.
Mas incomoda, e isso é que não se resolve com qualquer “cunha”.
A única dúvida que me fica é: que tipo de “cunha” é que o Sr. Dr. Nuno irá meter ao pai das crianças para “ficarem pagos”?
Vítor Ilharco é assessor
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