Nina,
Ponto final nessa conversa estragada que nos leva a juventude e nos põe em causa. A velhice fica-nos bem e ainda agora começou, mais vale começar a vesti-la enquanto está engomada, que isto, depois de se engelhar, custa mais a vestir e vai daí estamos nós aos saltinhos a puxar as calças nas coxas, a ver se passa, a ver se escorrega (e a propósito de escorregar, o que escorregava mesmo bem era uma nova garrafa de vinho fino, que se vier neste comboio na volta nem estraga, vem sossegadinha e ao desembocarmos em Campanhã até subimos até à Igreja de Santa Clara num trago só, a pagar a promessa do meu avô, pois que sim, aprendi a falar, não se vê logo?, pelos cotovelos tripeiros que tomei emprestados à nascença antes de me puxarem para a Cova a ver se medrava em sementeira rasa!)
Pois que então reportemos as dores, as agruras, as desilusões (e houve ilusões), o relatório médico com palavras ásperas a vaticinar-nos tratamentos e sentenças (desilusões?) para, logo em seguida, afogarmos a mágoa no Douro e sermos estridentes como mais ninguém nos deixa ser, só no granito percebem que voz alta e palavrão não magoa, é dito assim para viajar por penedos e estevas e chegar à outra margem. De que outra forma esperam respirar, assim baixinho não dá! De todo! Há que falar alto, quando alto deve ser falado, que enquanto programas a máquina para entrançar malhas coloridas dos casacos da nova colecção.
(E Nina, entrou aqui agora uma senhora vestida de verde relva, dos pés à cabeça, quer ver, vê lá tu, as pedras, e já agora o resto também, pontua cada resposta minha com um “aaaah…” reticente, assim mesmo, e repete baixinho o fim das minhas frases porque se apressa – baixinho – já percebeu que o tempo é corrido, como os nós, e assim mesmo baixinho confunde-se quem fala o quê, um mistério, um paraquedismo que não se aguenta!)
Pregamos em estilo Santa Catarina (tantas santas), ou Bolhão, ou tanto dá, Fernandes Tomás acima, ou abaixo, que nem aves canoras roucas pelos cigarros que ficaram a viver aqui dentro, ai os desarranjos urbanísticos e as reformas, ai os autarcas e os vereadores (e o raio que os partam a todos) e os nossos buracos continuam por tapar (e as contas também) e lá vem mais uma multa porque, enfim, existimos, e tínhamos de parar o carro ali, ainda para mais se ali vivemos, que coisa do demo.
Mas enfim, senta-te depressa, mais cedo, na estação de São Bento quando ainda não a tinham colonizado. Uma ou duas horas antes do comboio arrancar, para baixar a ansiedade que nos deprime e abafa e, mais a mais, até podes assim escolher um dos bancos que se vire para a frente ao seguir a linha do rio, e fugir à carruagem do motor senão logo ali ao virar Caíde já estamos certamente a assar, como as uvas, e sabes bem que te vou remoer baixinho que em tempos idos sempre podia ir para junto dos tropas no entre vagões, fumar mais um cigarrito com a perna estendida de fora quase a tocar na margem do rio até ganhar fôlego nas arribas e rezar pela chegada ao Pocinho por volta do pôr do sol. Em princípio, o pica já nem chateava.
Depois disso resta rezar por um triste táxi que me faça o transbordo a Moncorvo, a ver se ainda janto os peixinhos no cigano (que não é cigano, a mulher é que é) do Sabor, antes que os gaviões do betão apareçam e dêem conta disto tudo e depois, que nem aspiradores, nos levem o peixe todo, de modo que só nos ficam barbatanas decepadas por pás que imagino existirem na tripa da barragem, a girar violentamente, para – dizem – nos alumiar a todos, mesmo que a linha termine ali e se quede o destino, não mais além – mesmo Barca d’Alva, onde está? –, que para além dali já não é nosso e bem difícil foi impedirem-me de investigar os famosos túneis de Mós, quando ainda era imortal e podia andar nessas aventuras de urzes roxas e terra vermelha, a testar a resistência e a dolência também.
De modo que, Nina, agora que já pesam anos e já não somos imortais e quando te falo sabes que fico assim, como quem vende tralha de papel no quiosque de São Lázaro, quando ainda existia esse São Lázaro sabes? (tantos santos e santas), a contar histórias muito depressa antes que se me acabe a tinta e as folhas pautadas – que demorei a saber o que eram, demorei a perceber que eram pautas de outro tipo de música, a música do Porto que entrega aguça ao lápis rombo, pede lanche misto na confeitaria com Compal na montra e chama mil folhas a um bolo que não é o mil folhas e Napoleão ao que deveria ser, que em terra de molete a gente faz aquilo que quiser e a vida continua –, para que nos levem ao prado do Repouso a ver as águas a correr na mesma, com o estremecer da locomotiva ali na escarpa, e assim, dormimos, um dia.
Mariana Santos Martins é arquitecta
N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.
PÁGINA UM – O jornalismo independente (só) depende dos leitores.
Nascemos em Dezembro de 2021. Acreditamos que a qualidade e independência são valores reconhecidos pelos leitores. Fazemos jornalismo sem medos nem concessões. Não dependemos de grupos económicos nem do Estado. Não temos publicidade. Não temos dívidas. Não fazemos fretes. Fazemos jornalismo para os leitores, mas só sobreviveremos com o seu apoio financeiro. Apoie AQUI, de forma regular ou pontual.