Sustentável Peso do Ser

O ativismo de sofá and all that jazz

por Gabriela Teixeira Borges // Março 26, 2022


Categoria: Opinião

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“Eu não vou em modas, são tão novas, e eu já não. Eu sou da pré-roda, do pós-guerra e dos que virão”, assim canta o músico S. Pedro, na música Modas, incluída no seu álbum de 2017, intitulado O fim.

Este é um verso que recorrentemente me vem à memória, nas minhas incursões pelos meandros da “realidade” virtual, tal como aconteceu recentemente quando me apercebi que, de repente, tudo quanto é aplicação digital tem a bandeira da Ucrânia.

Esta nova forma de ativismo, facilmente operacionalizada através de um computador, smartphone ou tablet, vem desafiar a definição que lhe é atribuída pelo Priberam, segundo o qual ativismo é “a atitude moral que insiste mais nas necessidades da vida e da ação que nos princípios teóricos”, uma vez que, atualmente, o que parece realmente estar na moda é a propagação de uma retórica mainstream onde a nossa ação individual fica restrita à força da partilha e dos emojis, que servem para evidenciar a nossa aprovação (“gosto”), a nossa empatia (“coração”) ou a nossa solidariedade (“coragem”).

red fabric sofa

Mas qual será o impacto, de facto, desta nova atitude moral, que me atrevo a designar de ativismo líquido, para as necessidades da (nossa) vida? O conceito de modernidade líquida foi cunhado pelo sociólogo e filósofo Zygmunt Bauman como uma metáfora para descrever a condição de constante mobilidade e mudança que o autor identificou nos relacionamentos, identidades e economia global na sociedade contemporânea.

Em vez de se referir à modernidade e à pós-modernidade, Bauman visualizou uma transição de uma modernidade sólida para uma forma mais líquida de vida social, ou seja, “incapaz de manter qualquer forma ou curso por muito tempo” e “propensa a mudanças”, e discutiu como a modernidade líquida influência todos os aspetos da vida humana.

Também o nosso ativismo líquido se parece reger pelos mesmos princípios: os temas que partilhamos e fingimos debater nas redes sociais, sobre os quais muito nos compadecemos, por vezes até em discussões ofensivas e discursos de ódio que em nada refletem as causas que dizemos defender, duram apenas o tempo destinado a tudo que é uma moda – o tempo de caírem no esquecimento ou serem trocados por outros mais em voga.

Canta ainda S. Pedro que “só o tamanho das calças não diz de onde vens, para onde vais, se és feliz”, mas se à mulher de Cesar não bastava ser, tinha também de parecer, na modernidade líquida não nos basta parecer, é fundamental aparecer também.

E por isso dedicamos tanto do nosso tempo a aparecer nas redes sociais, em tentativas constantes de parecermos mais informados, mais atentos, mais abalados, profundamente revoltados, e aparentemente “ativos” em lutas contra o bem e o mal, o certo e o errado, a justiça e a injustiça, tendo sempre por protagonistas um vilão e um sofredor passivo que sem aquela nossa partilha no Twitter, Instagram, Facebook, ou qualquer outra rede social, está desamparado e entregue à sua sorte.

Por esse sofredor concreto, ou difuso, somos todos Charlie, somos todos me too, somos todos Rayan, e mais recentemente, somos todos Ucrânia.

Diabolizamos os vilões, e afastámo-los de nós, como se de uma outra espécie humana se tratassem, uma espécie que nos é estranha, antagónica, semelhante a um extraterrestre inadaptado aos sentimentos básicos que garantimos em caps lock guiarem a nossa existência: o respeito, a solidariedade, a empatia, o amor.

Mas serão mesmo estes os sentimentos básicos que possuímos e partilhamos? Ou será que o ativismo líquido reflete também algo mais profundo e preocupante sobre a forma como nos relacionamos com os outros e conosco?

Bauman fala também do amor líquido que descreve o tipo de relações interpessoais que se desenvolvem na pós-modernidade, baseadas num intenso individualismo desregulado. E esse mesmo individualismo parece fazer-nos depender tanto da aprovação dos outros, que nos faz querer parecer ser alguém que corresponde ao desejado, ao expectável, ao que deve ser e por isso é bom, quando esses mesmos outros nos estão a “vigiar” pelo ecrã.

Mas depois, no trato pessoal, nas ligações diretas que estabelecemos, seja com os que nos são mais próximos, seja com aqueles que se cruzam na nossa rotina, somos muitas vezes mesquinhos, antipáticos, desonestos, agressivos, indiferentes.

S. Pedro canta ainda “O aspeto é como o verniz, estala e cai e cresce o nariz”, e quando tal acontece, já temos as desculpas preparadas na ponta da língua: ou estamos deprimidos, ou o dia, o ano, a vida não nos corre de feição, ou fomos injustiçados e agora não podemos ser bondosos, ou estamos concentrados no amor próprio e esse, infelizmente, parece não deixar espaço a qualquer outro tipo de amor.

O amor passou de moda! Os grandes (e pequenos) gestos de amor agora são sinónimo de fraqueza ou de parolice aguda, e essa palavra tão forte e tão eficaz que era escrita em qualquer cartaz, de qualquer manifestação por uma qualquer luta, ficou perdido nos anos sessenta/setenta quando tudo o que precisávamos, segundo os Beatles, era de amor.

people holding shoulders sitting on wall

Hoje em dia tudo o que precisamos é das redes sociais, porque só elas nos permitem pareceremos boas pessoas, pessoas preocupadas, ativas na criação de uma realidade melhor, nem que seja apenas a virtual.

Conectamo-nos com os grandes temas que povoam as redes sociais, e que se tornam em oásis do que o mundo poderia ser, mas não é. E desconectamo-nos cada vez mais, de nós e dos que nos são próximos, negligenciando sempre para amanhã a mudança para a qual poderíamos contribuir efetivamente hoje, pois este tipo de conexão dá mais trabalho, perde mais vezes a rede, não se basta num clique, e exige esforço, empenho, ativismo a sério e não à séria.

Termino como comecei, com os versos de S. Pedro,porque acredito que dedicar tempo ao engenho de desenhar círculos perfeitos é uma forma de incentivar o regresso a nós mesmos e aos nossos, a qual nos permite fazermos realmente do mundo real um lugar melhor para todos! “Seja eu quem for, o que eu faço é que fica, isso sim vai dizer quem eu sou.”

Professora universitária


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