O ESTADO DOS MEDIA: A OPINIÃO DO EX-JORNALISTA MARCOS CRUZ

Arrependimento, lembrando o poema de Brecht

people having rally in the middle of road

por Marcos Cruz // Janeiro 31, 2024


Categoria: Opinião

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Sou um antigo jornalista, trabalhei no Diário de Notícias entre 1991 e 2009, com experiências intercalares curtíssimas em redacções de outros jornais. Hoje, tendo a Internet como fonte genérica de informação, devido à perda de credibilidade dos media corporativos, consulto regularmente o PÁGINA UM. E foi de lá que extraí a motivação para escrever.

Quero apenas partilhar uma ideia, a que não posso chamar de reflexão porque me surgiu de impulso: temo que artigos como os do Paulo Salvador [‘Mea culpa’, jornalista] legitimem um atraso vergonhoso no reconhecimento de culpa da classe jornalística por parte de quem sempre possuiu todos os instrumentos de análise. Mais simplesmente: que abra caminho a Madalenas arrependidas chorando lágrimas de crocodilo que as abençoam à luz dos olhares comuns.

a person kneeling down next to a cross

Eu nunca me considerei especial, sou um tipo normalíssimo, nem burro nem particularmente inteligente, mas vivo apontado ao que vejo como grandes virtudes: honestidade, simplicidade, bondade, etc. Por outras palavras, persigo horizontes, só me movem objectivos que sei de antemão não poder atingir. Talvez isso me tenha ajudado a perceber, há mais de 30 anos, para onde caminhava o jornalismo.

E foi isso, certamente, o que fez de mim uma das 123 pessoas despedidas pela Controlinveste, na primeira grande sangria de jornalistas de que tenho memória [em 2009]. Na altura, em assembleias, recorri a um clichê – aludir àquele tão estafado quanto preciso poema do Brecht que diz: “Primeiro levaram os negros/Mas não me importei com isso/Eu não era negro; Em seguida levaram alguns operários/Mas não me importei com isso/Eu também não era operário; Depois prenderam os miseráveis/Mas não me importei com isso/Porque eu não sou miserável; Depois agarraram uns desempregados/Mas como tenho o meu emprego/Também não me importei; Agora estão me levando/Mas já é tarde; Como eu não me importei com ninguém/Ninguém se importa comigo.” – para dar conta aos colegas do seu destino inevitável, inevitavelmente igual ao meu, mas apenas protelado.

Foi quase em vão, dado que a maior parte não se solidarizou connosco. Os tempos foram correndo e, em vagas espaçadas, a ampulheta da razão acabou por encher de areia a minha campânula. Mais uma vez, nada que espante: as coisas estavam-nos à frente dos olhos.

woman using gray binoculars

É por isso que me custa imenso aceitar estas epifanias de 25ª hora, mais ainda vindas de profissionais com cargos de chefia que podiam e deviam ter acordado a tempo de lutar contra o que agora denunciam. Supõe-se que um jornalista chegue primeiro à informação e depois a transmita aos seus leitores. Como podemos elogiar o contrário? Neste caso, aposto que a generalidade dos leitores do PÁGINA UM já tinha o diagnóstico mais que feito, anos ou décadas antes de o Paulo Salvador o vir anunciar.

Não quero com isto, até porque não o conheço pessoalmente, insinuar que o Paulo Salvador tenha escrito o artigo para salvar a face ou fazer-se passar por bonzinho quando já quase não há caldo na malga. Até acredito na bondade do seu gesto. Mas, sinceramente, não vejo como encaixar aqui o “mais vale tarde que nunca”. Preferia o silêncio dele e uma mudança de conduta.

Marcos Cruz é um antigo jornalista do Diário de Notícias

N.D. (4/2/2024) – Atribuído muitas vezes a Bertold Brecht, convém referir que, em abono a verdade, quem enunciou o texto conhecido por ‘First they came‘ foi o pastor protestante Martin Niemöller (1892-1984), que inicialmente foi um adepto do regime nazi. O texto aborda o desinteresse inicial nas perseguições aos comunistas, socialistas, sindicalistas e judeus.


N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM. Neste caso, o director do PÁGINA UM não apenas subscreve como aplaude este texto, considerando que constitui mais um bom contributo para uma reflexão séria sobre a crise no jornalismo, que começa na própria classe, e sobre a qual há muito a mudar. O PÁGINA UM convida todos os antigos e actuais jornalistas, bem como estudiosos sobre os media, a enviarem-nos textos para publicação.


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