PS: 'Olha para o que critico, não olhes para o que fiz'

Governos Costa contrataram por 10 vezes consultores para ‘fazer’ políticas públicas

por Pedro Almeida Vieira // Junho 4, 2024


Categoria: Exame

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Um autêntico boomerang político. Pedro Nuno Santos veio criticar o Governo Montenegro pela contratação de uma consultora holandesa para ajudar na elaboração do Plano de Emergência da Saúde. Mas, afinal, durante os Governos Costa, essa empresa e as suas ‘irmãs’ celebraram 55 contratos com hospitais e entidades tuteladas pelo Ministério da Saúde, conforme noticiou o PÁGINA UM. Mas ontem, Marta Temido ainda veio argumentar que nunca se fez, nos governos socialistas, ‘outsourcing’ para definir políticas públicas. Mentira. O PÁGINA UM revela hoje 10 contratos desde 2019, assinados pelas Secretarias-Gerais de quatro ministérios para serviços que visavam a criação de planos ou estratrégias políticas. O último foi no próprio dia da tomada de posse de Luís Montenegro. Entre os 10, há até um celebrado pelo Ministério da Saúde quando Marta Temido ainda estava em funções, e descobriu-se ainda mais quatro da Presidência do Conselho de Ministros. Tudo afinal, na prática, semelhante ao processo do Plano de Emergência da Saúde, mas em número assinalável.


Não é afinal nada inédito a contratação de serviços de consultadoria externa para ajudar o Governo a definir políticas públicas, tanto assim que o anterior Governo socialista o fez amiúde. Numa pesquisa do PÁGINA UM, descobriram-se pelo menos uma dezena de contratos durante os Governos de António Costa que se assemelham ao mesmo modus operandi da polémica colaboração da consultora IQVIA, com sede na Holanda, que participou na definição do recente Plano de Emergência da Saúde, promovido pela ministra Ana Paula Martins.

Recorde-se que esta polémica se iniciou na passada semana com a manifestação de estranheza do secretário-geral do Partido Socialista, Pedro Nuno, por ter sido contratada uma empresa externa ao Ministério da Saúde, sendo secundada pela antiga ministra e actual cabeça-de-lista às Europeias, Marta Temido, que se mostrou “perplexa” com a contratação de consultoras para definir estratégias políticas.

Pedro Nuno Santos ‘levantou a lebre’, alimentada por Marta Temido, mas afinal Governo socialista fez aquilo que agora critica no Governo Montenegro.

Ontem, o PÁGINA UM já revelara que, afinal, durante os Governos de António Costa, as empresas do grupo holandês, sobretudo a IASIST – que se encontra em processo de fusão com a sua ‘irmã’ IQVIA Solutions Portugal –, celebraram 55 contratos públicos, quase todos por ajuste directo, no valor de quase 2,1 milhões de euros, incluindo hospitais e entidades directamente tuteladas pelo Ministério da Saúde.

Em reacção à notícia do PÁGINA UM, destacada pela SIC Notícias, e admitindo que pudesse haver contratos com “entidades do perímetro do Ministério da Saúde”, Marta Temido disse que daquilo que é o seu “conhecimento, o Ministério da Saúde [nos governos socialistas, infere-se] não recorreu a terceiros para contratação de definição de estratégias, mas não posso ir para além disso”.

Mas o PÁGINA UM pode e pôde. E foi.

E a partir de pesquisas de contratos assinados exclusivamente pelas Secretarias-Gerais dos diversos ministérios detectou-se um total de 10 contratos onde, de forma explícita e evidente, o objecto passou pela colaboração externa na definição de políticas públicas, designadamente na elaboração de planos ou estratégias sectoriais. De fora desta análise do PÁGINA UM estão as prestações de serviços de consultadoria para avaliação de instrumentos de políticas públicas, bastante frequentes.

O mais recente deste tipo de contratos, para além daquele que o actual Ministério da Saúde já assumir ter celebrado com a IQVIA – e que ainda não consta do Portal Base – foi concretizado no exacto dia da tomada de posse de Luís Montenegro como primeiro-ministro, mas terá sido ainda uma ‘herança’ do Governo Costa, ou mais propriamente da antiga ministra Ana Mendes Godinho, uma vez que foi assumido pela Secretaria-Geral do Ministério do Trabalho, Solidariedade e Segurança Social.

Ministério da Saúde do último Governo socialista fez dois contratos similares aos que agora são criticados pelo secretário-geral socialistas, Pedro Nuno Santos.

Não existem, no Portal Base, muitos elementos sobre este contrato com o Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra, sabendo-se apenas que se pagará 38.740 euros pela “realização de um estudo sobre formas de integração dos Princípios Horizontais na Implementação do Pessoas 2030”, um programa temático, com uma dotação de cerca de 5,7 mil milhões de euros, que se dedica a apoiar medidas de política pública que permitam enfrentar os desafios das qualificações da população, do emprego, da inclusão social e, transversalmente, da questão demográfica.

Saliente-se que se sabe pouco desta participação do centro universitário que já foi liderado por Boaventura Sousa Santos, mas devia-se saber, porque existe um evidente atropelo do Código dos Contratos Públicos, uma vez que se usa uma norma para justificar a não redução a escrito do acordo entre as partas apenas passível de recorrer em montantes até 10 mil euros, mas o preço é quase quatro vezes superior.

Mas, mesmo na área da Saúde, o Governo socialista decidiu ‘pedir ajuda externa’, com o erário pública, para a definição de estratégias políticas. Por duas vezes, uma das quais no tempo de Marta Temido na pasta.

O mais recente contrato, sob tutela de Manuel Pizarro, foi assinado no dia 7 de Dezembro do ano passado entre a Secretaria-Geral do Ministério da Saúde e a Terapiailimitada, para a “aquisição de serviços técnicos na área da saúde mental, na área da prevenção do suicídio, para consolidar a estratégia da CNPSM [Coordenação Nacional das Políticas de Saúde Mental]”. O dono desta empresa, que recebeu 19.895,21 euros, ficando assim abaixo do limiar para se prescindir de contrato escrito, é o psiquiatra Ricardo Gusmão, professor da Faculdade de Medicina do Porto, presidente nacional da Aliança Europeia contra a Depressão e ainda presidente da Sociedade Portuguesa de Suicidiologia e Prevenção do Suicídio.

Quanto ao segundo contrato da Secretaria-Geral do Ministério da Saúde, foi celebrado em 20 de Junho de 2022, dois meses antes da demissão de Marta Temido. Neste caso, o contrato, no valor de 15.000 euros foi celebrado com a empresa Renata Pinto Unipessoal por “consultoria de comunicação, para a elaboração e implementação do Plano Estratégico de Comunicação do Conselho Nacional de Saúde”.

Foi, contudo, a Secretaria-Geral do Ministério da Economia que, ao longo dos ‘anos socialistas’ mais recorreu a contratações externas para gizar políticas públicas. De acordo com o levantamento do PÁGINA UM, em 27 de Agosto do ano passado foi contratada a sociedade anónima Keyknowledge People para “serviços especializados de consultoria no âmbito da definição de uma Estratégia e Plano de Ação para a Inovação e Transformação Digital”.

Foram pagos 66.200 euros e, neste caso, o contrato disponível é muito explícito nas tarefas a cumprir pelos consultores externos, porque inclui as especificações técnicas. Além de tarefas de diagnóstico, os consultores tinham de realizar “entrevistas com os dirigentes da Secretaria-Geral para identificação dos problemas e necessidades em matérias de governança da Inovação e Transição Digital”, desenvolver e implementar “um sistema de governança” e ainda elaborar “o Plano de Acção detalhado para implementação da Estratégia de Inovação e Transformação Digital”. E nem faltava a obrigatoriedade de definir estratégias de comunicação e acompanhamento do progresso. Em suma, uma espécie de ‘política pública chave-na-mão’ a ser concebida por uma empresa externa.

Poucos dias antes deste contrato, a 17 de Agosto, foi contratada a Quórum Numérico, detida por Marta Marques da Costa. A empresa unipessoal foi criada em 2020 e tem como objecto social a elaboração e desenvolvimento de projectos imobiliários, incluindo compra, venda e arrendamento, serviços de engenharia e formação, construção civil, remodelação e restauro de imóveis, empreitadas de obras públicas e particulares e exploração de empreendimentos imobiliários e turísticos. Porém, a Secretaria-Geral do então ministro António Costa Silva considerou que a Quórum Numérica era a única empresa capaz, por isso um ajuste directo de 6.930 euros, para dar conselhos na “elaboração do Plano de Eficiência ECO.AP 2030 para o triénio 2022/2024”.

Governos socialistas desde 2019 fizeram, através de quatro Secretarias-Gerais, 10 contratos com consultores externos para definir políticas públicas.

O terceiro contrato é muito mais antigo, remontando a Fevereiro de 2019, e desta feita por contratada a GIGASIS – Consultoria e Sistemas Informáticos para “serviços de consultadoria no âmbito da Estratégia e Sistemas de Informação da Economia” para esse ano. O preço foi de 30.848,40 euros por 11 meses de trabalho.

Por fim, ainda durante o primeiro mandato de Costa, no período da ‘geringonça’, a Secretaria-Geral do Ministério da Economia ainda assinou um contrato de 59.900 euros em finais de Julho de 2017 com a Sigmadetalhe para “aquisição de serviços de consultadoria no âmbito da Estratégia e Sistemas de Informação”

A própria Presidência do Conselho de Ministros, através da respectiva Secretaria-Geral, também tratou de fazer contratações externas para auxiliar a definição de políticas públicas. Em Abril de 2020 entregou 15.000 euros ao Instituto de Engenharia Mecânica e Gestão Industrial – uma instituição de utilidade pública provada associada à Universidade do Porto – por serviços de “consultoria técnica com vista à elaboração de plano para promoção da neutralidade carbónica.

Mais recentemente, em Novembro de 2023, a PressDireto, uma empresa de relações públicas, foi contratada para a “elaboração de uma Estratégia de Comunicação do Fundo para o Asilo, a Migração e a Integração 2030”, recebendo 19.900 euros por um serviço que durou 10 dias.

Por fim, no lote de contratos detactados pelo PÁGINA UM, inclui-se a Secretaria de outro ministério, o do Ambente, em 19 de Novembro, contratou a empresa CAOS – Borboletas e Sustentabilidade para lhe prestar “serviços de consultadoria estratégica e técnica na preparação e acompanhamento de diversos dossiers no plano internacional e comunitário, no âmbito da Presidência Portuguesa do Conselho da União Europeia, e do Trio de Presidências (Alemã-Portuguesa-Eslovena) designadamente em matéria de ambiente e alterações climáticas”. Por essa prestação, a empresa pertencente ao consultor Gonçalo Cavalheiro, recebeu 95.670 euros durante um ano de trabalho.


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