― Porque estás zangado e de rosto abatido?
― Senhor, todos os dias me levanto de madrugada para cavar, fresar, esmigalhar, plantar ou semear, sachar, raspar, amontoar, regar, colher, acarretar e, sei eu, e vós também, o que mais… Tudo isto faço, quer sob o sol inclemente quer sob a impedieosa chuva.
― Cuidado, rapaz… A chuva e o sol são criações minhas…
― E também o jardim no Éden, que Vós concebestes sem enxadas nem enxertias. Imagino que Vos bastou um estalar de dedos… E depois de terdes mostrado o paraíso a meus pais, expulsaste-os, destinando-nos a estas terras, que amaldiçoastes, e de que só à custa de penoso trabalho, todos os dias das nossas vidas, conseguimos arrancar parco alimento.
― Não sejas insolente! Os teus pais transgrediram. Dei-lhes a vida, dei-lhes tudo para viverem sem esforço, apenas sob a condição de não comerem do fruto da árvore do conhecimento do bem e do mal. Violaram essa única regra. Eu até fui misericordioso, porque os ameaçara com a morte.
― Morte?! O que é isso?! Nunca vi tal bicho?
― Não é nenhum bicho, rapaz. Morte é o que sucede aos seres vivos quando por mim são chamados para a terra de onde foram tirados.
― Na terra ando já eu, desde que o sol nasce até fugir do horizonte. Bem que me queria tirar daqui…
― Irra! Estou bem fornido contigo. Eu deveria ter desconfiado da minha ideia em deixar os humanos se reproduzirem por si próprios, pela fornicação. Não deu bom resultado!… No Éden ficou a árvore da Vida, rapaz. Se os humanos comessem do seu fruto viveriam para sempre. Assim, sem isso, serão atingidos pela morte lá para os oitocentos ou novecentos anos, conforme me aprouver, caso a caso. A vossa vida cessa como a dos outros animais. Deixam de respirar, o coração pára os movimentos, ficam estáticos, os animais vos devoram, os insectos vos chupam, os fungos vos decompõem e os microorganismos vos desintegram até nada mais sobrar que nutrientes misturando-se na terra de onde eu formei teu pai…
― Não estou a entender nada… Sei apenas que meus pais comeram uma certa fruta no jardim, e que deu nisto… Mas eles não falam muito disto, a mim e ao meu irmão. Dizem que a culpa foi de um animal rastejante… Serpente, penso ser esse o nome. Poderíeis ter sido condescendente e apenas castigar o raio da besta do animal. Ou ter-lhe tirado a língua, quando o criaste, para que não falasse com minha mãe. Ou, melhor ainda, não o terdes deixado entrar no Éden…
― Rapaz, pensas demais e mal, e isso leva-te ao pecado. Cuidado, ele tem muita inclinação para ti, mas deves dominá-lo.
― Inclinado ando eu todos os meus dias, na labuta da terra. E nem um sorriso levei de agrado quando ontem Vos fiz uma oferta de frutos da terra. Escolhi para Vós os mais viçosos pimentos verdes da minha horta… Ao invés, só tivestes olhos para aquele carneiro mal morto, cheio de banhas, entregue pelo meu irmão. Ainda por cima, ele fez uma fogueira e deixou aquilo esturricar-se tudo!
― Desgraçado. Não entendeste mesmo! As oferendas devem ser-me feitas sempre em holocausto, rapaz. É a mais nobre, diria a única, forma de me honrar e agradar desde o tempo dos tempos.
― E como eu haveria de imaginar isso, se somos os primeiros humanos e nunca nos orientaste para o melhor proceder?…
― O teu irmão, de bom coração, intuiu o meu gosto…
― Pois, pois… Fartou-se de se pavonear por o elogiares, o fedelho; E logo a mim, que lhe tomo a primazia na idade. Fiquei-lhe com uma fúria…
― Acalma a tua raiva. Vai chamar o Abel, e ele que te leve ao campo para mostrar como se faz um bom holocausto…
― E queres que eu asse os meus pimentos?!
― Sim!… Mas, olha, Caim: junta-lhe umas sardinhas!
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