A manhã acontece com a tranquilidade própria dos primeiros dias de setembro. Uma pausa entre o corrupio das férias e o do trabalho. O caminho quase deserto. A brisa fresca convida à preguiça no terraço. Um fundo azul-céu. O sol a derramar dourado sobre a paisagem. A luz a tocar ao de leve as copas verdes dos pinheiros mansos. Luminosas por fora. Sombrias por dentro. O vaivém dos pássaros a traçar linhas entre as árvores do mato e as do quintal. Os hibiscos floridos. Grandes. Alegres. Nas paredes, osgas gordas, moles, a aproveitar o que resta do verão. Um dia perfeito. Um velho passa e dá de vaia. Daí a uns minutos, outro. Aposentados. Indiferentes ao calendário. Os dias são apenas dias. O percurso diário, circular como o tempo: exercício, terapia, passeio, lugar de encontro.
O senhor da bicicleta passa para cima e para baixo, para baixo e para cima. Dá as voltas que a idade lhe permite e que o médico recomendou. Não perde a oportunidade para lembrar às duas amigas que passam que: – Já não era para estar aqui hoje! Uma pessoa tem de se mexer. Elas confirmam, acrescentando a importância de espairecer. E lá vão. Elas para baixo, ele para cima. Poucos minutos depois, novamente a bicicleta. Cruza-se, desta feita, com uma senhora roliça, peito de pomba, passada lesta e ar de quem sabe coisas:
⎼ Vem aí trovoada! ⎼ exclama.
⎼ Pois vem! ⎼ confirma ele, continuando a pedalar.
Olho para o céu e não vejo os sinais. Também não questiono. A moleza tomou conta de mim. Continuo refastelada a observar. Reparo como se cruzam, mas não param. Por hoje, estão conversados. Conhecem-se bem. Sabem das vidas, das famílias, das maleitas uns dos outros. Além disso, um pouco mais adiante, um vizinho instalou um cadeirão debaixo de uma árvore e passa ali boa parte do seu tempo, garantindo que todos ficam ao corrente das novidades.
Ocorre-me, entretanto, que há vários dias que não vejo uma das senhoras que por aqui costuma passar. Aguardo alguém que me possa dar notícias. Mais uma vez, a bicicleta. Aceno e pergunto se sabe o que é feito da vizinha. Conta-me que cegou. Que já não sai:
⎼ Não vê nadinha! ⎼ reforça.
Está morta, penso. Tão triste!
Um pé atrás do outro, uma pedalada depois da outra, um cumprimento, a frase que se atira sem esperar resposta: Está fresquinho!; É preciso é ir andando!; Ah, valente!; É p’rá medalha! Provas de vida. Garantias renovadas de que ainda se está aqui. De que se é. O que importa saber se vem trovoada? Por aqui, confirma-se que se está vivo, que se vê e se é visto, que se ouve e se é ouvido. Exercita-se a certeza que se desmancha cada dia.
A senhora que sabe coisas volta a passar.
⎼ Vem aí trovoada! ⎼ grito-lhe.
⎼ Pois vem! Ê nã lhe disse, J’quim? ⎼ responde, olhando para o meu interlocutor.
⎼ Tá visto que sim. ⎼ diz ele com um sorriso.
Um para cima, outro para baixo.
Sílvia Quinteiro é professora da Universidade do Algarve
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