Voo TAP 103 Lisboa-Belo Horizonte. Onze horas da manhã. Novo aviso de atraso na partida. Laura anda de um lado para o outro. Coloca o passaporte na mochila, verifica o bilhete pela enésima vez, arruma-o também. Senta-se, levanta-se, volta a sentar-se. A espera adensa a inquietude e o medo de voar. Ao microfone o anúncio da possibilidade de um upgrade para a classe executiva. Laura pondera. Conclui que isso em nada altera a sua angústia: Se cair a económica, a executiva também não fica lá em cima.
Finalmente, ordem de embarque. Aguarda ansiosa na fila e pergunta-se porque não ficou em casa. Àquela hora estaria a regressar de uma tranquila manhã de praia. Mole. Sem preocupações. A saborear as merecidas férias. Porquê ir, então, se voar a aflige, se viajar dá sempre tanto trabalho e tem tantos imprevistos? Porquê abandonar o conforto do lugar seguro? Porque insiste em ir?
A viagem faz-se com a ajuda de um comprimido milagroso. Laura desperta com o anúncio da aterragem. Um pousar suave. Palmas. Uns persignam-se, outros verbalizam um “Graças a Deus” ou à Virgem da sua devoção. Laura aperta a caixa dos comprimidos: Abençoados!
Pés em terra firme. Aguarda-a o controle do passaporte, a espera das malas e a verificação da bagagem. Sai e depara-se de imediato com a amiga que a aguarda. Fica espantada ao vê-la. Ali, à sua frente. Um sorriso enorme. Braços abertos. Não compreende o seu próprio espanto. A viagem estava há muito planeada e sabia perfeitamente que amiga a viria buscar. No entanto, há sempre qualquer coisa de extraordinário no facto de encontrar alguém num local totalmente diferente daquele onde a conhecemos. Sente, neste momento, a mesma espécie de incredulidade que a assalta quando se encontra pela primeira vez perante um monumento famoso. Como se fosse preciso ir para ter a certeza. Para confirmar a existência.
Segue-se uma longa deslocação até à cidade. Pensa perceber agora a curiosa designação do aeroporto: “Confins”. Bastante adequada, na verdade. É noite e para lá da estrada, pouco se vê. A conversa, essa, é animada e vai dando forma ao que a noite esconde.
Chegadas ao centro da cidade, a amiga leva-a pelas ruas de Belo Horizonte com a alegria de quem mostra orgulhoso a sua casa. Os monumentos, as ruas famosas, os lugares da literatura, os belos edifícios. Mal podem acreditar que estão ali as duas. Laura ouve com atenção a história e as histórias da capital mineira. Quer ver tudo. Saber tudo. Experimentar tudo. E enquanto a amiga continua a mostrar-lhe a sua cidade, na mente de Laura começa a formar-se a primeira imagem do país. O seu olhar detém-se na luz vermelha de um semáforo a tentar assomar-se por detrás de um enorme emaranhado de cabos. Uma longa faixa negra. A perder de vista. Fios de esparguete negro, al dente, pendurados em postes:
⎼ Tantos fios! Mal se veem os semáforos. Isto é normal? ⎼ pergunta.
⎼ É, sim. ⎼ responde a amiga com uma gargalhada ⎼ Bem-vinda ao Brasil. Quando um cabo se estraga, não é substituído. Acrescenta-se outro. Aí, vai ficando cada vez mais volumoso.
Riem-se as duas. Laura imagina o poste à sua frente a transpirar como um halterofilista que excedeu os seus limites. As pernas a fraquejar e, por fim, o sucumbir ao peso. Repara, então, como a estes aglomerados de linhas horizontais se juntam, num plano inferior, estendidos sobre os muros e vedações nas entradas dos edifícios, incontáveis rolos de arame farpado com lâminas reluzentes:
⎼ Tanto arame farpado e tantas grades na entrada dos prédios. ⎼ comenta.
⎼ É. Tem de ser. ⎼ responde a amiga ⎼ Não está em Faro, não.
Laura repara que alguns edifícios têm grades até ao terceiro piso. Cabos, arame farpado, gradeamento ⎼ a miríade de linhas horizontais e verticais dá forma a um estranho e sinistro jogo do galo. Sinal de uma convivência pouco pacífica entre duas vontades distintas: a de unir e a de separar. O esforço de união é grande, porém frágil. Os cabos que a proporcionam são muitos, porém atabalhoados, com ar de improviso e de remendo. O desejo de separação, pelo contrário, é firme. As barras dos gradeamentos são robustas, as farpas do arame, feitas de materiais de boa qualidade. Um investimento desigual, evidência das enormes clivagens e da debilidade das costuras que unem a sociedade brasileira.
Na manhã seguinte, o programa é uma visita à zona da Pampulha. Estacionam numa rua bem perto da lagoa artificial e seguem a pé. Laura mal pode esperar por ver ao vivo a obra de Niemeyer. Atravessa a estrada em passo acelerado e depara-se com a pequena igreja de São Francisco. Niemeyer! As formas arredondadas. Ondas de azul e branco. Tão pequenina. Sente o coração bater mais forte. Aproxima-se. Quer tocar os azulejos. Repete com as pontas dos dedos os traços azuis que desenham peixes e pássaros sobre um fundo branco. Emociona-se. Percebe, então, porque veio. Porque veio desta vez e porque vai sempre. Olha para a amiga e exclama:
⎼ É aqui! É mesmo aqui!
Sílvia Quinteiro é professora da Universidade do Algarve
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