Estava calmamente sentado debaixo de uma árvore, sozinho, num parque que já faz parte de mim – ao ponto de por vezes achar que é meu –, e nem mesmo os costumeiros mendigos e consumidores de droga que fazem parte do habitat por lá deambulavam.
O termómetro não marcaria mais de 20 graus e pairavam algumas nuvens indistintas no céu.
Junto a mim, passavam os patos e os cisnes habituais naquele parque extremamente verde e com um certo glamour ecológico, até parecendo que já me conheciam.
Seriam os patos de Pequim assim tão simpáticos?
Ouviam-se também pássaros a cantarolar e a assobiar. A atmosfera primaveril era perfeita para estar a escrever nas notas do meu telemóvel uma mensagem elaborada para uma amiga, quando vejo um polícia com ar cansado ao longe. Percebi de imediato que se dirigia a mim.
Tinha uns 45 anos e estava de máscara. Fazia um esforço grande para se deslocar, uma vez que o solo estava ligeiramente inclinado não podendo, no entanto, considerar-se uma subida.
Parecia que o agente acabara de correr a maratona de Nova Iorque. E como estava, efectivamente, a vir ter comigo, tirei a minha máscara do bolso, mas quando a ia colocar na boca, ele disse ainda ofegante:
– Faz questão de estar a pelo menos dois metros de mim?
Respondi que sim. E ele continuou:
– Então o senhor não tem de meter a máscara. Boa tarde, era só para lhe dizer que tem de circular!
– Como?
– Sim, tem de circular. Pode estar no parque, mas tem de circular. É uma directiva do Governo.
Sabe que estamos em confinamento e que foi declarada uma pandemia?
Respirou fundo, parecia estar mesmo cansado.
– Quer dizer, não posso estar aqui mas posso andar por aí?
– Sim senhor! Faça o que lhe disse e boa tarde.
Enquanto se preparava para ir embora, ainda o inquiri:
– Gostava de fazer uma pergunta…
– Claro! Se souber responder…
Sorriu envergonhadamente.
– Eu sou realizador de cinema e vídeo, e fotógrafo, estou aqui a trabalhar. A rua é o meu local de trabalho…
– Já somos dois!
Interrompeu. Confirmei que estava com uma respiração anormal e sugeri que tirasse a máscara. Disse-lhe também que não era bom estar a inspirar o seu dióxido de carbono.
– Então se não se importa, acho que vou tirar a máscara por uns segundos. Estou a dois metros de si, não tenha medo.
– Claro que não tenho medo. Fui eu que sugeri.
Respondi, chateado.
Nitidamente o homem começou a ficar em poucos segundos com outra cara. Uma ligeira cor rosa apoderava-se paulatinamente do seu rosto bastante comum. Era um homem encorpado mas nitidamente parecia andar em baixo, senti também que gostava de ser polícia.
– Pode fazer então a pergunta.
Lembrou-me.
– Como dizia, sou artista, pronto… e uso o meu telemóvel para trabalhar… então se quiser filmar ou fotografar aquela árvore por exemplo, ou aquele cisne, posso parar para o fazer? A fotografia, caso contrário corre o risco de ficar desfocada ou tremida…
– Mas é profissional?
– Sim.
– Nesse caso, sim.
Notei que estávamos parados há pelo menos dois minutos.
– Já agora, qual é esse critério que vocês usam? Os vírus apanham-se menos a andar?
Pigarreou nervosamente.
– …Sim!
– Por exemplo, vão ali cinco rapazes juntos, mas em andamento…
Apontei.
– Estou a ver…
– E é pior eu estar aqui sentado sozinho?
– Parece que sim.
Pigarreou novamente sem convicção.
– Ai é?
Reforcei.
– Diz que sim…
– Mas diz que sim… Quem?
– Você não vê os telejornais?
Mudou até de tom, tornando-se ligeiramente mais agressivo.
– Vejo. Mas eu não quero que você use a lei dos telejornais. Sentia-me mais seguro se vocês tivessem recomendações próprias… de epidemiologistas por exemplo. Estava mais seguro se o Ministério da Administração Interna contactasse directamente com a DGS, por exemplo. Não me parece que seja o caso. Até parece que quem manda são as televisões através dos telejornais.
– Não queria mais nada. Isto é uma excepção, uma emergência. Pensa que está na Noruega?
– Se é para estarem a seguir o que os telejornais dizem, não era preciso a polícia.
Atirei só para chatear.
– Não bata mais no ceguinho. Calma! Também não fique assim. Só mandei circular. Já não se pode dizer nada que ficam logo nervosos os artistas. Ai coitadinho!.. É muito sensível.
Até achei piada à rápida mudança. E respondi com uma pergunta:
– Então, mas nós estamos aqui parados a falar ao tempo e agora?
– Tem razão sim senhor.
Mudou de atitude.
– Se calhar ficámos infectados…
Arrisquei. O homem pôs automaticamente a máscara e disse:
– Tem razão. Vamos circular.
Fez uma pausa e quando ía para despedir-me e agradecer-lhe pelo facto de me deixar estar parado a fotografar, o polícia ainda com cara de chateado, perguntou intrigado:
– Que género de filmes faz?
– Policiais.
Menti.
– Policiais? Percebe a situação?
Deu uma gargalhada.
– Está a falar com um polícia e tem uma câmara na mão, um telemóvel, vá. Tem piada. Também gosto muito de policiais. Gosto muito do Millers Crossing.
– Esse não é policial. É de gansters.
– É a mesma coisa. Então e nos seus filmes somos bons ou maus?
– Faço policiais mas com detectives com carros descapotáveis, não é com polícias normais como o senhor agente.
Menti novamente, lembrei-me do Miami Vice old school que via quando era puto.
– Então e os seus policias também têm crocodilos de estimação a viver em barcos?…
Deu uma gargalhada forte novamente e tirou automaticamente a máscara como acto reflexo. Entretanto falávamos enquanto andávamos, mas íamos parando quando surgia uma palavra ou uma ideia mais interessante, hábito muito português do pára-arranca. Percebi que o bófia que já tinha uma tonalidade que se visse na cara, também tinha visto a série dos anos oitenta, em que até os mendigos vestiam blazers com chumaços.
– Não. Não faço remakes do Miami Vice.
Disse a certa altura quando a série veio à baila novamente, fingindo estar chateado, ou estava mesmo, já não sei bem. Não era a primeira vez que PSPs me abordavam na rua nessa altura de confinamento, ou porque não tinha máscara, ou porque não eram horas para estar na rua, ou mesmo só para chatearem.
– Oh amigo, não leve a mal, mas eu gostava muito dessa série. Até chorei no dia em que o Tubbs levou um tiro. Se calhar até foi isso que me fez vir para a polícia. Para vingar o Tubbs. Às vezes penso que, se não fosse polícia tinha-me metido nisso dos filmes. Nós aqui não ganhamos nada. Você deve ser milionário não?
– Não. Mas em que realidade é que você vive? Perdemos dinheiro até.
– Olhe mas temos outra coisa em comum. Ambos temos de comprar as armas.
E deu outra gargalhada bem sonora. Até eu me ri desta vez.
– Bem, quem o viu há uns minutos e quem o vê agora…
Disse eu, notando a transformação evidente.
– Sabe, é que conversar faz bem.
Naquele momento já estávamos junto da minha mota fora do parque. Ele olhou para ela.
– Não quero acreditar. É sua? Sabe que uma das minhas outras paixões são Vespas. É uma PK 50?
– Não. É 125.
– É linda. Tenho duas Sprint dos anos 70. Tem de lá ir ver à minha garagem em Sesimbra. Se ficarmos amigos… Uma delas é amarela também.
Não lhe consegui dizer que estas já não eram da Piaggio mas da LML, uma marca indiana que comprou a italiana. Dizem que em caso de avaria da cambota não terá arranjo e irá para o galheiro.
– Sei muito bem quais são.
Mudei de cara. Também adoro Vespas e gosto sempre de conhecer pessoas que pertençam ao mesmo clube. O polícia, naquele momento, era mesmo outro. Ia dando umas biqueiradas no pneu da frente como os portugueses de uma certa geração fazem, nunca se percebendo bem porquê, enquanto enaltecia aspectos da mota. Uma vez também dei uns pontapés na furgoneta de um vizinho só por dar enquanto falava do tempo, só porque via os outros fazerem. Depois arrependi-me.
– Isto pega sempre não é?
Mentira! Se havia coisa que as Vespas tinham, era não pegar muitas vezes pelo menos à primeira. Mas respondi que sim, sabendo que ele sabia que não.
Curioso como ainda há vinte minutos éramos dois desconhecidos mediados por uma autoridade meio ficcional e agora éramos como irmãos. Estranho como a paixão por motas e cinema pode mudar circunstâncias, ainda que sem qualquer espécie de profundidade. Somos latinos, não há nada a fazer. Ele olhou para mim muito amigavelmente e disse:
– Olhe, estou agora a acabar o meu turno. Não quer ir ali beber um café ou qualquer coisa? Eu ofereço com todo o prazer.
– Mas está tudo fechado.
Fiz notar. Naquela época as cidades pareciam aldeias.
– Sim, mas para nós eles vendem, não se preocupe. Vamos ali ao Morais. Ele até nos deixa entrar lá para dentro para a cave. Acha o quê? Que eu ia agora para casa deprimir-me e ver comédias do canal Hollywood? Ainda dava um tiro na cabeça… Ou na televisão!
Rimos os dois.
– Está bem.
– Assim vai poder falar dos seus filmes. A vida é fantástica quando somos reconhecidos e temos afinidades. Não acha?
E deu-me uma palmada amigável nas costas.
– Sim, acho!
– Realmente o mundo anda estúpido.
Concluiu o agente ainda parado e em silêncio enquanto fitava a minha mota que muitas alegrias me deu enquanto andou.
Ao fundo ouvia-se ainda o belo canto dos pássaros que vinha do jardim onde nos conhecemos e ainda que indistintamente e de forma abstracta, os pássaros pareciam confirmar a conclusão do polícia.
Pelo menos para mim e para a minha Vespa, isso era óbvio.
Ruy Otero é artista media
Ilustrações de Ruy Otero
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