Uma orfandade emocional

por Maria Afonso Peixoto // Outubro 24, 2022


Categoria: Cultura

minuto/s restantes

Título

Os abismos

Autora

PILAR QUINTANA (tradução: Pedro Rapoula)

Editora

Dom Quixote (Setembro de 2022)

Cotação

16/20

Recensão

Depois do sucesso retumbante de A Cadela, que foi finalista do National Book Award em 2020 nos Estados Unidos, chegou agora a Portugal o novo romance da escritora colombiana Pilar Quintana, Os Abismos, que venceu em 2021 o prestigiado Prémio Alfaguara em 2021 de romance. Uma vez mais, é a Dom Quixote a editar a obra daquela que é uma das romancistas com maior projecção na América Latina.

Os Abismos retrata os dramas de uma família colombiana atormentada, nos anos 1980, e a história é-nos contada pela filha (única), Cláudia, uma menina de apenas nove anos.  A mãe, também Cláudia, não o queria ter sido, e só o foi por força das convenções sociais que não a deixaram prosseguir uma carreira nem escolher outro destino que não fosse o casamento e a maternidade. Assim, pode dizer-se que a distância emocional que define a relação entre ambas é “abismal” – sempre fria, distante, negligente –, à imagem do que tinha sido, também, entre a avó e mãe de Cláudia.

Embora Cláudia “adulta” repita constantemente, quase a tentar convencer-se a si mesma, que não é como a sua mãe, a verdade é que não consegue deixar de reproduzir com a sua filha os mesmos padrões emocionais que herdou e assimilhou na sua infância.

O pai, Jorge, 21 anos mais velho do que Cláudia-mãe, passa a maior parte do tempo a trabalhar no supermercado que gere com a sua irmã, Amélia. E, quando, enfim, está em casa, a sua presença é quase meramente física, já não são muitas as palavras que troca com a filha – não obstante, o pouco que diz deixa transparecer algum afecto.

O seguinte trecho em que Cláudia descreve a celebração do seu nono aniversário é revelador do trato entre o casal e a filha:

A minha mãe, como todos os anos, recordou a sua gravidez. A grande barriga, os pés inchados, que a cada cinco minutos tinha vontade de ir à casa de banho, que não conseguia dormir e o que lhe custava levantar-se da cama. As dores começaram ao almoço. Eram a coisa mais horrível que já tinha sentido. O meu pai levou-a para a clínica e ali sofreu toda a tarde, toda a noite, toda a manhã do dia seguinte, toda uma nova tarde, a sentir que ia morrer, e outra noite completa, até de madrugada.

– Saiu roxa. Horrorosa. Puseram-ma ao peito e eu, a tremer e a chorar, pensei: esforcei-me tanto para isto?

A minha mãe deu uma gargalhada tão grande que se lhe viu o céu da boca, profundo e sulcado como o tronco de uma pessoa subnutrida.

– A bebé mais feia da clínica – disse o meu pai.

Deste modo, Cláudia-filha cresce com os pais, mas sempre numa espécie de orfandade emocional, privada do afecto que, na idade em que está, tem necessidade de receber e que nunca se cansa de tentar obter. A situação familiar, que já é complexa e delicada, leva um novo “tombo” quando a Cláudia-mãe começa a ter um caso com o marido da cunhada.

A traição fá-la afundar-se ainda mais e cair numa depressão que a deixa praticamente de cama, a whisky e comprimidos. A partir de aí, a sua personagem fica num limbo constante, parecendo estar sempre a um pequeno passo de “resvalar” para a autodestruição, o que confere um certo clima de mistério que se vai adensando ao longo do romance. Com Cláudia-filha, fala sobre Grace Kelly e Natalie Wood, dizendo-lhe que as trágicas mortes das actrizes só podem mesmo ter sido por suicídio.  

Tendo a selva colombiana sempre como “pano de fundo”, o título Os Abismos remete tanto para os precipícios psicológicos em que as personagens se encontram, mergulhadas em sentimentos depressivos, como para os precipícios físicos que vão surgindo ao longo de toda a história.

Pilar Quintana consegue conferir ao romance uma forte carga emocional, e a sua intensidade é o que nos deixa agarrados ao livro, mas é também, em contrapartida, o único motivo que torna difícil ler as 200 páginas de uma só vez.  

De facto, a melancolia pode ser esmagadora, e é impossível ficar indiferente à infância infeliz da pequena Cláudia que, na sua inocência – sempre evidenciada na forma como descreve e interpreta os acontecimentos –, procura amor nos adultos que a rodeiam, mas raras vezes com sucesso.

Parece ser consensual entre os críticos que Os Abismos não conseguiu chegar ao mesmo patamar literário que A Cadela. Em todo o caso, vale, e muito, a pena ler este novo romance de Pilar Quintana, não só pela qualidade da escrita, como pelo enredo dramático e inebriante, que aborda dinâmicas e mecanismos psicológicos que, mais ou menos familiares, não soarão estranhos a ninguém.

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