Cânone P1

Fialho de Almeida

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Quase sempre a coloração do fantástico, em Fialho de Almeida (1857-1911), manifesta-se em regime realista, sob duas formas hiperbólicas dos traços disfóricos: a caricatura e a intensificação dos aspectos desagradáveis ou mesmo atemorizantes dos objectos e dos eventos – a primeira tendente à revelação humorística, o outro à catarse (piedade e temor, ou mesmo terror) quase de feição trágica.   

Muitos leitores e comentadores da obra de Fialho reconhecem que, como diz Raul Brandão, “«as descrições perderam a proporção, as figuras e a realidade, transformadas em figuras de dor e de grotesco»” (in Coelho, 1969: 220), resultando que, segundo Jacinto Prado Coelho, “se denunciam, [nele] os reflexos das estéticas impressionista e pré-rafaelista” (1969: 220).

Fialho de Almeida

Reconhece-lhe este crítico, aliás, um “romantismo temperamental, condicionado pelo materialismo e pela nevrose decadente” que inclinaria o autor de Os Gatos a uma “inquietação impulsiva e fragmentária” e o tornariam, também, poderoso na sua expressividade “pelo sortilégio com que transmite sensações” (Coelho, 1969: 221-222). É partindo deste ponto, amplamente partilhado pela tradição dos estudos da obra de Fialho, que Óscar Lopes acrescenta o conceito de expressionismo para situar, periodologicamente, a obra do autor das crónicas de Lisboa Galante, na sua articulação com as tradições poéticas e as estéticas que enquadram a sua obra:

Chamo aqui expressionista a uma técnica literária que em vez de uma tipificação da realidade bem reconhecível termo a termo (técnica naturalista), em vez de simples lampejos mais subjectivantes onde a análise costumeira se omite mas continua possível a identificação global do objecto (técnica impressionista, também utilizada por Fialho em Os Ceifeiros), se substitui o modelo do senso comum da realidade por um outro modelo que, na sua estrutura de conjunto, é aparentemente irreal mas nos faz sentir algo de importante [notando-se], antes de mais, que essa estética tem, quase sempre, um ar opressivo de pesadelo, de horror traduzido por situações irreais” (Lopes, 1987: 188).

A designação parece-nos justa e toda a tradição gótica (O. Lopes reconhece estar presente, em Fialho, a de raiz germânica) poderia considerar-se no escoramento do gosto de Fialho pelo macabro onde, sem dúvida, se anunciam as vesânias e as fulgurações de anomalias que marcam a sua obra, dimensão que lhe é reconhecida como decadente, decadentista ou, ainda, de romantismo tardio.

Pormenor de As tentações de Santo Antão de Jerónimo Bosch

Como termo de comparação, no campo da pintura, do gosto reinante, sobretudo nas suas crónicas, Óscar Lopes evoca Rembrandt e Goya. Reiteramo-lo quanto ao segundo, especialmente… já que de tempos mais remotos nos pareceria de evocar, mais do que o lado “negro” de Rembrandt, a alucinação alegórica de Bosch ou de Callot.

Um dos textos que o ilustre estudioso que acabamos de referir considera mais representativo dessa atitude expressionista é a crónica “O Enterro do Rei D. Luís” publicado no volume I de Os Gatos:

… As fisionomias dos nossos homens públicos depõem desagradavelmente a sua favor. […] A maior parte são pequenos monstros de olhar estrábico, ou vago, ou fugidio, ou injectado; caras balofas, olheirentas, dissimétricas, com um estigma, algumas, do quer que é de inquietador, que a gente não sabe o que seja, mas lá está a servir de síndroma à maqueira, oculta, e a prevenir a opinião contra a boa-fé dos esforços deles, em prol da causa que juraram servir.  […] Há uma mistura de porco e cão de fila, de malandro e de títere, em muitas daquelas faces de primeiros oficiais de secretaria, de governadores civis, de tenentes-coronéis, de generais, de bispos, de deputados, de conselheiros de estado e de ministros” (2006: 101-102).

Muitos dos Caprichos de Goya poderiam servir-nos de exemplo do elo que liga Fialho à iconografia fantástica. O “Porque esconderlos”, ou “Estan calientes”, poderiam ter como título complementar a frase de Fialho que acabemos de citar: “Há uma mistura de porco e cão de fila, de malandro e de títere, em muitas daquelas faces…”. Mas a composição pode ir mais longe, como podemos ver um pouco adiante, na mesma crónica, e a evocação inflectir para a fantasia terrífica que inspira As Metamorfoses de Ovídio, as maravilhas genesíacas de um Bosch ou as fantasias de Callott, bem como as ficções literárias, herdeiras deste último, de Hoffmann ou de Gautier, quando Fialho afirma sobre as verdadeiras caras que se revelam:

Exemplos dos Caprichos de Goya

quando a máscara lhes tomba, e por detrás do cortesão surge o carnívoro, tigre ou hiena, que do seu antro segue o fio de um plano tenebroso, sindicato ou emboscada política, venda da pena ou  venda da palavra… […]. A passagem dos grotescos é uma ovação macabra e ininterrupta” (2006:102-103).

 Relacionar Fialho com o imaginário gótico que acompanhou o emergir do romantismo na literatura ocidental, ou com a soturnidade de uma certa pintura carregada de melancolia ou de alusão ao terror e ao fantástico, não resulta apenas do que se patenteia, como figuração, quando analisamos os seus escritos de pendor mais ou menos fantasioso, ou com horizontes relativamente delimitados pelo jornalismo. Ele próprio evoca os mestres que o inspiram, face a imagens que percepciona e transmite, como, por exemplo, encontramos expresso na crónica “De Noite”, recolhida em Lisboa Galante:

É assim um grande leque de casarões, de que a noite não deixa aperceber senão bocados, e de cuja sobranceria soturna a fantasia só evoca monstruosidades e tragédias. Naquela enorme mancha a preto e branco, semelhante a um  pesadelo hugoesco que Goya e Rembrandt houvessem reproduzido a água forte, a vista, uma vez repousada do sobressalto da primeira visão, compraz-se agora em procurar, na tumultuosa embriogenia das formas, sítios familiares por ela conhecidos, como outros tantos  pontos de referência para a apreciação geral do panorama” (1994: 123).

Ainda na mesma crónica, sobressaem outras evocações do mesmo filão:

É o nocturno quem desde então se apodera da cidade, uma vez fechadas as lojas, escurecidas as ruas, os americanos e trens feitos mais raros, para dar larga aos seus caprichos, monomanias, análises e doenças; porque é ele que na chateza honesta da cidade ainda alimenta no peito a verde chama macabra do fantástico, que Edgar Poë tanto se compraz em ver bruxulear, como uma flor de civilização, podre e funérea, à superfície das grandes degringoladas sociais. […] Mas como o homem das multidões de Edgar Poë, outros caminham sempre de roda dos prédios fechados, farejando, retrocedendo, seguindo atrás de um, seguindo atrás de outro, em circuitos de angústia, agarrados à última esperança, e à caça sempre, condotières do vício, de apaziguarem a nevrose que desorienta e exaspera no mais recôndito das suas afectividades doentias” (1994:126 e 128).

 The Two Pantaloons – Callot, 1616 Etching (British Museum, Londres)

De facto, não seriam despropositadas aqui, a completar esta perspectiva, as palavras de Hoffman sobre o desenhador francês, ao prefaciar os seus contos, ou “fantasias à maneira de Callot”, como ele diz em subtítulo:

“[…] Os seus desenhos são apenas reflexos das aparições fantásticas que a magia da sua invenção evoca […]. A ironia, que confronta o homem e a besta para tornar irrisórios os comportamentos humanos dignos de piedade, é sinal de um espírito profundo; e estas figuras grotescas de Callot, com uma parte humana e outra bestial, desvelam ao olhar perspicaz de um observador sério todas as alusões que se escondem sob a máscara da bufonaria” (1969: 18[i]).

É claro que o próprio Hoffmann, nas suas narrativas, em geral, usa sem parcimónia o imaginário fantástico, o qual acolhe o misto de bestiário e caracteriologia populares, bem como os esboços de monstros, que servem de signos semanticamente saturados no folclore, para estruturar uma visão do mundo, atenta sobretudo à orgânica da sociedade e das suas éticas.

O sistema narrativo que ele privilegia emparceira, em grande parte, com as raízes do gótico que Ann Radcliffe usa, mas é, também, devedor do imaginário dos contos populares e das figurações teriomorfas e infernais que este segrega. Ambas as vertentes transparecem no excerto do seu conto, “O vaso de ouro”, que em seguida apresentamos:

photo of library with turned on lights

Em frente da pobre rapariga ajoelhada, hirta como uma estátua de mármore, distingues [tu, leitor] neste momento, acocorada no solo, uma criatura descarnada, de pele acobreada, de nariz recurvado como o bico de um abutre e com uns olhos de gato, lançando chispas; do manto negro que lhe cobre os ombros saem braços esqueléticos e lívidos e, mexendo o caldeirão infernal o ente lança gritos de assustar no desencadear da tempestade. Perante o espectáculo agitado desta cena satânica, digna de um Rembrandt ou de um Breughel do Inferno, creio que os teus cabelos, amigo leitor, se terão eriçado, ainda que tenhas mostrado, até agora, uma coragem inabalável” (Hoffmann, 1969: 257-258[ii]).

Alongámo-nos na transcrição para demonstrar claramente como, em grande parte, a construção deste tipo de narrativa desenvolve essa técnica, tão cara aos expressionistas, de incluir, na sua mise en scène, o olhar e o pathos do espectador, patente em obras que se manifestaram, um século depois de Hoffmann ter publicado as suas narrativas, ao princípio na Alemanha, em variados sistemas expressivos como a arquitectura, as artes plásticas, o teatro e o cinema, sobretudo, embora tenha transparecido nas artes em geral.

A técnica que tem em conta a focalização do leitor ou espectador, incorporada nas narrativas, reforça as dimensões plásticas e os posicionamentos de perspectiva que se desenvolveu desde o romance gótico até ao film noir, passando pelo cinema expressionista. Assim, compreende-se melhor o alcance da hipótese colocada por Óscar Lopes, acima transcrita, sobretudo tendo em conta o que ele escreve em seguida:

“[…] Eu suponho que as criações mais originais de Fialho como ficcionista apontam a este processo, que as tradições de audácia fantasmagórica do Romantismo germânico (e já reconhecemos o interesse de Fialho por tal literatura de mistério e fantasmagoria) ajudaram a eclodir, mais tarde, sobretudo nos países de língua germânica. […] Notemos, antes de mais, que essa estética tem, quase sempre, um ar opressivo de pesadelo, de horror traduzido por situações irreais. Ora, em descrições do contista, tão frequentemente concebidas como quadros pictóricos, lá surgem repetidos, quase maníacos, os epítetos de rambrandesco, goyesco ou a evocação das gravuras de Doré, funcionando como uma espécie de símbolo estenográfico do belo horrível que o tenta […] onde […] o cronista desata «o bestiário da alucinação doida e disforme» com amplificações por vezes retorizadas, mas em todo o caso com garra alucinante.  […] O autor mais ou menos mostra aperceber-se de estar utilizando a fantasmagoria como meio de expressão de coisas a que os processos naturalistas não chegam” (Lopes, 1987: 188-190).  

O filão aqui referido constituiu-se, de modo mais ou menos sistemático, em paralelo com outras configurações reconhecidas como marcas  diferenciadoras que caracterizaram a emergência e a formulação poética do romantismo: o apelo do irracional, a afirmação do eu como fonte e destino da verdade – mesmo quando se convoca o imaginário fantástico, a fantasmagoria e as percepções distorcidas do mundo empírico –, o confronto do bem e do mal com particular apreço pelas dimensões perturbantes, terríficas mas fascinantes, deste, bem como uma retórica da persuasão, toda ela assente na autenticidade de uma voz pessoal, que convoca a cumplicidade e compaixão do ouvinte ou do leitor, relativamente às representações elaboradas pela entidade enunciativa.

Talvez nunca a entidade autoral se tenha confundido tão completamente com a voz e o ponto de vista autodiegético, ou de enunciação lírica, como aconteceu com os autores que hoje reconhecemos como componentes da constelação romântica, nos espaços europeus e americanos. Mesmo os primeiros escritos que anunciam tendências que se viriam a revelar dominantes no romantismo, ainda no século XVIII, lidam com essa retórica em variados escalões de veemência, buscando, do leitor, não uma anuência, mas uma adesão arrebatada.

Leviatã, Doré (ilustração para a Bíblia)

Não é a crença, a convicção mais ou menos racional, que estabelece o pacto poético entre o público leitor e a produção de uma Radcliffe ou de um Hoffmann, mas sim o arrepio ou o estremecimento emocional que  nos arrasta para o percurso das heroínas – sobretudo das heroínas, porque elas predominam, como vítimas do terror ameaçante – e ainda, também, a compaixão, a sintonia afectiva, a confabulação onírica, cujos mecanismos, motivos e componentes se agregam em torno da vítima, como um bastidor de dispositivos e hipóteses que, num registo de exigência racional e realista, teríamos dificuldade em aceitar ou mesmo conceber.

Abandonando as convenções poéticas que asseguravam a estabilidade da razão pela inclusão ou enclausuramento do fantástico no plano do mitológico, do religioso ou da licença poética da fabulação alegórica, apenas para efeitos de exempla, o romantismo vem colocar, como possibilidade do experienciável, a verosimilhança do fantástico.

O que é extraordinário, para as vivências e consonâncias perceptivas da comunidade, revela-se possível nos universos ficcionais e romanescos da produção literária que antecede e anuncia o romantismo, bem como numa boa parte da produção dos românticos e das posteriores gerações, desenvolvendo-se, a partir da época realista, num sub-género que as histórias e as genologias literárias vão arrumando sob o título de literatura fantástica.

O satanismo, que acompanha o gosto parnasiano de um Baudelaire ou de um Gautier, a efabulação do retorno dos mortos ou da emergência de entidades infernais, no quotidiano dos seres vivos habitando universos regidos pelos princípios de uma normalidade em que isso não é possível, invadem as narrativas como acontecimentos extraordinários ou, mais frequentemente, são sugeridos por sinais aos quais não se sucede o fenómeno extraordinário, que apenas o anunciam in absentia, mas que vêm lembrar aos humanos que a estabilidade e normalidade do mundo em que vivem podem ser ameaçadas pelos seres do outro mundo. Como diz Todorov, o fantástico nasce da ambiguidade gerada pela possibilidade dessa ameaça:

“[…] Realidade ou sonho? Verdade ou ilusão? Num mundo que é, efectivamente, o nosso, o que nós conhecemos, sem diabos, sílfides nem vampiros, produz-se um acontecimento que não se pode explicar pelas leis desse mesmo mundo familiar. Aquele que se apercebe do acontecimento deve optar por uma das duas soluções possíveis: ou se trata de uma ilusão dos sentidos, de um produto da imaginação e as leis do mundo continuam a ser o que sempre foram; ou o fenómeno aconteceu realmente, é uma parte integrante da realidade e, então, essa realidade é regidas por leis que ignoramos. […] O fantástico ocupa o tempo desta incerteza; uma vez escolhida a resposta, abandonamos o fantástico para entrarmos num dos dois géneros vizinhos: o estranho ou maravilhoso” (1970: 29).

Derretendo (possível auto-retrato?) de Rembrandt

Digamos, desde já, aproveitando esta cómoda arrumação proposta por Todorov (que é interessante por ser simples e nos ajudar a encaminhar a reflexão, através de um percurso que se revela, muitas vezes, resvaladiço), que podemos vislumbrar, como ponto de partida, para o entendimento da dimensão da obra de Fialho a que Óscar Lopes chama expressionista, fortemente marcada pelo gosto decadentista e pelo satanismo finissecular, o enquadramento de alguns dos seus textos no género estranho, de que fala Todorov. De facto, Fialho busca, quase sempre, a caricatura com objectivos críticos, ou a parábola em que o efeito hiperbólico do extraordinário produz um efeito de argumentação ética ou ideológica. O efeito derrisório causado por este procedimento não deve ser ignorado nem mesmo minimizado.

Não se trata, no entanto, de um maravilhoso como o que Flaubert constrói, num dos seus contos, ou mesmo em boa parte do seu Tentations de Saint Antoine, ou como aquele que Eça convoca nas suas parábolas bíblicas.         

As distorções produzidas na caricatura ou na parábola crítica de Fialho, pelo facto de guiarem a imaginação através de um processo de metaforização, em que as analogias, os reconhecimentos e as enfatizações põem a percepção e o discernimento alerta, geram um modelo de representação que agudiza, pelo estranhamento (e, por isso, a designação de estranho, aplicada ao género, é tão adequada), a nossa capacidade de congeminar hipóteses sobre aspectos da realidade, da sociedade e dos valores humanos que, de outro modo, permaneceriam ocultos. Quanto a esse procedimento, ele está mais perto do visionarismo satanista dos românticos do que nalgum do imaginário feérico dos seus contemporâneos.

Podemos perceber essa proximidade num conto em que o espírito da vida boémia (parisiense por excelência, deve notar-se) se manifesta aberta e hiperbolicamente, “Le club des hachichins”, Théophile Gautier explora o filão já cultivado por Hoffmann e, embora o hiperbolize, procura tornar patentes as raízes do fantástico a que é devedor:

Peu à peu le salon s’était rempli de figures extraordinaires, comme on n’en trouve que dans les eaux-fortes de Callot et  dans les aquatintes de Goya : un pêle-mêle d’oripeaux et de haillons caractéristiques, de e formes humaines et bestiales; en toute autre occasion, j’eusse été peut-être inquiet d’une pareille compagnie, mais il n’y avait rien de menaçant dans ces monstruosités. C’était la malice, et non la férocité qui faisait tiller ces prunelles. La bonne humeur seule découvrait ces crocs désordonnés et ces incisives pointues” (Gautier, 1993: 180).

Como se vê neste texto de Gautier, a dimensão do fantástico e do terrífico pode aproximar-se francamente da caricatura, da alusão crítica pela via do inquietante, sem por isso se desligar inteiramente da estética do fantástico, tal como ela foi cultivada pelos românticos e pós-românticos, inclusive os realistas e naturalistas, sobretudo naquelas criações que os estudiosos das estéticas modernas têm designado por gótico. É esse filão que, muitas vezes, parece inspirar Fialho, mesmo quando, aparentemente, pretende fazer o mais puro naturalismo, como acontece nos seus primeiros contos.

Quanto a essa dimensão, poderíamos evocar aqui os trechos mais marcantes do seu conto longo, “A Ruiva”, do qual, só para exemplo, colhido quase ao acaso, apresentamos um trecho em que, ao efeito macabro, vem juntar-se o anelo de o macaquear, de o tornar caricatura do cenário do terror:

Começou a amar principalmente os mortos que paravam à porta do cemitério em ricas berlindas douradas, entre filas de gatos-pingados lúgubres de tochas acesas, e puxados por seis parelhas cobertas de crepes. Visitava-os na casa da observação, acocorada a um canto com o olhar absorto, durante as vinte e quatro horas que os caixões ali passavam abertos, e onde contemplava, deitados na pétrea imobilidade derradeira, os que na sua vaidade egoísta, corruptos e miasmáticos, iam habitar em sepulcros de mármore, com figuras sentimentais na fachada e pomposas inscrições nas lápides. Pode dizer-se que aprendeu a ler no cemitério, quando curiosa na sua pobreza esfrangalhada queria saber os nomes e posições ocupadas no mundo pelos que habitavam aquela branca cidade de mármores, de que se julgava rainha” (2003: 16).

Na composição das figuras dignas de pasmo que enchem as suas narrativas, quer sejam do foro da crónica interventiva ou de costumes, quer sejam ficcionais, quer sejam, ainda, um pouco de ambas, cultivadas em textos de escopo memorialístico, verificamos que a tradição do conto maravilhoso e o estilo da narrativa estranha se conjugam, num hábil compromisso que possibilita a emergência de um fantástico sui generis, o qual parece apresentar-se a cada um de nós como fazendo parte do nosso quotidiano, presumivelmente presente se dobrarmos certas esquinas malfadadas, que o destino nos apresenta sem nos ter preparado para isso.

grayscale photo of people sitting on bench near trees

E é verdade que a estranheza inquietante, embora seja mais própria das grandes metrópoles, onde reina o anonimato e o desconhecimento mútuo entre indivíduos que, de súbito, convivem na mais estreita intimidade, pode surgir, igualmente, nas sociedades rurais, onde a crendice é mais cultivada. Pode surgir, por exemplo, nos traços fisionómicos de um conterrâneo, de um vizinho aparentemente normal na sua singularidade, sobretudo quando nele reparam mais atentamente. É o que acontece na crónica, com forte componente de fantasia, “O Anão”, de O País das Uvas, ao descrever a personagem que dá título à narrativa:

Reparando bem, havia até nas feições dele alguma coisa de herbívoro, flagrante à vista. O focinho, aguçado e móvel, mascava sempre. As bosseladuras da testa tinham tendências cónicas de chibato. Era típico o ar espantadiço com que escutava os rumores dispersos pelo campo. Vinham a ele os rebanhos, como a um irmão de armas. Os mesmos bodes, com o seu espirituoso donaire mefistofélico, lhe reconheciam um ar de família. E roçavam-se-lhe amorosamente pelos ceifões as cabrinhas coquetes, como quem suspira: «Desposa-me!»” (s/d: 87).   

A tentação de Fialho pelo fantástico da fisionomia é tão grande que lhe invade mesmo os textos onde seria de esperar a moderação retórica da argumentação ponderada, talvez exaltada das adjectivações de aprovação ou desaprovação, mas cautelosa no modo de fazer o retrato a pessoas que lhe mereciam respeito como, por exemplo, os seus confrades. Mesmo nos textos em que louva, como acontece com o que escreve sobre Malheiro Dias, não abandona o fascínio pelo bestiário: “Dois olhos pretos, stellares, d’animalzinho sagaz que ficasse infantil por um principio de graça, inherente ás espécies de felinos […]” (1923: 99). Não espanta, por isso, que, ao referir-se a Eça, com quem mantém um perpétuo contencioso, nem sempre fácil de entender, o seu fisionomismo recorra a um bestiário de inspiração satânica:

silhouette photograph of trees with foggy weather

Olhem bem essa masque de face cavada e nariz astuto, com olhos de myope alternadamente coriscantes e doces, bocca fina, que sob as azas do bigode, aos cantos se atormenta numa ironia que faz na sua conversa e na sua proza, um scintillar de espadas em duello. Ao premir na orbita o monoculo, as sobrancelhas negras estranhamente arqueadas approximam-se e palpitam, como remiges em azas de corvo, pondo na physionomia, o que seja de um cunho mephistophelico” (1923: 104).

É claro que Eça aparece, aqui, quase reproduzindo em pessoa o “senhor das trevas, do qual ele próprio propõe a imagem, o molde descritivo, de maneira algo hilariante, em O Mandarim:

Toda a sua originalidade estava no rosto, sem barba, de linhas fortes e duras; o nariz brusco, de um aquilino formidável, apresentava a expressão rapace e atacante de um bico de águia; o corte dos lábios, muito firme, fazia-lhe como uma boca de bronze; os olhos, ao fixar-se, assemelhavam dois  clarões de tiro, partindo subitamente de entre as sarças tenebrosas das sobrancelhas unidas; era lívido – mas, aqui e além na pele, corriam-lhe raiações sanguíneas como num velho mármore fenício” (1992: 89).   

De facto, Fialho de Almeida parece ter levado às últimas consequências, de modo sistemático, refinado e original, o recurso à figura do animal, como “material” para a construção de metáforas, ou mesmo alegorias que procuram ser emblemáticos exempla das características humanas, sobretudo as instintuais, tendo servido, desde as origens da organização social da humanidade, quer para revelar as dimensões da animalidade no homem, quer para “tomar a diversidade das espécies para suporte conceptual da diversidade social” (Lévi-Stauss, 1986: 129)[iii].

fountain pen on black lined paper

Não andaria longe, por isso, dos mestres que evoca. Pela associação de imagens, a simples figuração de brilho e negrume – que costuma ser já, quase, uma catacrese da sinédoque com que se designam os olhos e as sobrancelhas: “pontos luminosos e traços negros” –, quando se evoca o corvo, é  transformada na própria tonalidade infernal, sobretudo quando o movimento da “remiges”, gera a feição mefistofélica, sobrancelhas unindo-se, arqueadas sobre o olhar penetrante (muito aberto e fixo, como que para hipnotizar, como sugere o movimento do monóculo). O corvo surge aí, então, como a ave de mau agoiro, de missão necrófaga, que plana sobres os campos de batalha, para arrebatar os cadáveres, ou aparece como Malphas, figura infernal, que um demonólogo como Collin de Plancy define do seguinte modo:

Vice-presidente dos infernos, que aparece sob a forma de corvo. Quando se mostra em figura humana, o som da a voz é rouco; constrói cidadelas e torres inexpugnáveis, derruba as muralhas inimigas, faz encontrar bons obreiros, fornece espíritos familiares, recebe sacrifícios e engana os sacrificantes. Quarenta legiões lhe obedecem” (2002: 291).       

O manancial do simbolismo animal parece não se esgotar é repleto de versáteis composições. Como Durand diz sobre Goya:

Dos Caprichos aos Desastres da Guerra, o pintor espanhol fez uma inultrapassável análise iconográfica da bestialidade, símbolo eterno de Cronos e de Tânato. Vamos ver sobrepor-se a esta primeira face teriomorfa do tempo a máscara tenebrosa que, nas constelações estudadas, as alusões à negrura do sol às suas devastações deixavam pressentir” (1989: 65).

Em boa verdade, esta tendência para uma fantasia aberta às hipóteses do fantástico é constante em Fialho, tornando-se uma tentação maior nas crónicas ou nas narrativas que se apresentam como registos de ocorrências pouco comuns mas que são publicadas em recolhas contendo textos que podem ser entendidos como reportagens ou notas de jornalista.

Podemos ler, em “A Condessa”, um desses textos que tanto nos sugerem a crónica de eventos reais como a ficção, contidos em Lisboa Galante, o seguinte:

Entanto, à medida que ela ia embocetando, com lascívias de panterazinha domada, todos os proventos da sua galante profissão, impava o Chiado de não fazer a sua convivência. […] Eram gastrálgicos de ventre alto, trinta anos fanados com primeiros pés de galinha ao canto das órbitas; pequenos crustáceos de redacção, vilegiando na esteira das coristas da Trindade; jovens loiros de esporas e vincos cebáceos na copa mole dos feltros; enfim, dominadores ricos, herdeiros do alto comércio, aristocratas de nariz em bec: ou glaucos militarzinhos pobres, que o rumor dos breaks elegantes, ou o trote das parelhas em voga, não deixavam resignadamente aceitar a miserável vida que levavam” (1994: 84).  

O que chama a nossa atenção e nos desafia a aprofundar, em mais amplas indagações, a desenvolver em lugar que possa acolher mais alargada exposição, o culto do fantástico e o uso da figuração terrífica em Fialho de Almeida, é o modo como ele se processa textualmente no conjunto da sua obra.

De facto, Fialho não é um autor de textos fantásticos: as construções das suas intrigas desenvolvem-se segundo a dominante naturalista, sob o pendão hegemónico do cientismo positivista, e as suas crónicas reportam-se a eventos que se revelam empiricamente reais, num cotejo com os noticiários do seu tempo e com as crónicas da historiografia que os subsumem.

Ele não pratica evasões ou escapadelas pelo imaginário fantasioso, como Eça o fez, através da alegoria, da história terrífica ou mesmo do género fantástico propriamente dito (como nas lendas de inspiração bíblica, no conto “O Defunto” ou em O Mandarim), ou como Ramalho Ortigão, quando acompanha Eça na fantasia romântica da “estrada de Sintra”.

Trata-se, efectivamente, de inserir a sugestão do terrífico, do anómalo ou do extraordinário no interior do mais chão e zeloso realismo, no registo da crónica em regime realista, por vezes com propaladas argumentações de teor positivista, quase em registo experimentalista de um Claude Bernard. Tudo se passa como se argumentasse que o universo é banal e repetitivo, de tal modo que o que de mais estranho nos ocorre cabe no território do previsível, nas regiões da catástrofe aniquiladora e da morte – mas que, contudo, as zonas terríficas, que estão para lá da nossa possibilidade experiencial, se fazem anunciar por sinais, por quadros prenunciantes da dissolução e do fim, que se revelam como coruscantes imagens ameaçadoras, implacáveis e medonhas.

brown wooden panel door beside gray concrete wall

De algum modo, é esse imaginário que está presente na cena de “Os Pobres” recolhido em O País das Uvas, no qual o próprio impulso sexual, a onda do desejo, se transformam num imaginário de pesadelo, num enredo cósmico que parece não ter fim, e que poderia emblematizar o horizonte de toda a obra de Fialho. Como encerramento desta matéria, citamos, na íntegra, a cena aludida:

Já sob o império das raivas de multiplicação que radiam dela, o descalção se arrasta, de braços estendidos, à procura do centro histerógeno de pecado, enquanto da outra banda a fêmea se debate num desespero semelhante ao que lhe dá. Andam assim nas trevas procurando-se, de rastos como cobras, lacerando os farrapos,  os torsos na espiral do mesmo adusto anseio; e afinal acham, o contacto das suas carnes dá na sombra uma crepitação de escamas de imundície, quando alfim ele, súbito liberto, pelas impunidades da treva, das suas preocupações de hediondez, ala sobre ela o monstruoso corpo de colosso, que fosforeja e estria, como um mastodonte  cioso, os grandes músculos. E as unhas rasgam-lhe os rins, a cravá-la em si com fúrias de chacal. Cavas, opressas, ouvem-se as respirações suflar bestialidade, e de ambos os dois as sedes são vorazes, e o resfôlego das duas máquinas irmana-se, rimando os urros e sofreguidões das suas virgindades envelhecidas a pontapés, sob os desdéns carnais de toda a raça humana” (sd: 41).

Não poderíamos encontrar melhor exemplo, para ilustrar o processo de intromissão súbita e pontual do fantástico, recorrente e sistemático a pautar a sua obra, patente numa impressionante quantidade de textos que foram dados a lume em volume.

Carlos Jorge Figueiredo Jorge é professor emérito da Universidade de Évora


Bibliografia

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[i] Traduzimos o texto francês, vertido do alemão para esta língua por Henri Egmont, com revisão final de Albert Béguin.

[ii] Traduzimos o texto francês, vertido do alemão para esta língua por André Espiau.

[iii] Sobre a matéria aqui tratada, relativa à amplitude a à força semântica do animal ou das variedades de animais evocadas, apoiamo-nos, além das obras referidas, nas entradas respectivas do  Dictionnaire des symboles de Chevalier e Gheerbrant, 1982, Laffont, Paris.

[iv] Para citação de texto actualizado utilizamos a edição de 2003, publicada sob a direcção de Vasco Graça Moura.

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