Recensão: A arte de driblar destinos

A arte de crescer e contrariar as probabilidades

por Maria Afonso Peixoto // Junho 17, 2023


Categoria: Cultura

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Título

A arte de driblar destinos

Autor

CELSO COSTA

Editora (Edição)

LeYa (Maio de 2023)

Cotação

16/20

Recensão

O título deste romance de estreia de Celso Costa, aos 74 anos, reconhecido matemático brasileiro e agora também escritor, encaixaria perfeitamente numa auto-biografia. E, na verdade, não sendo um livro de memórias, esta é uma obra de autoficção, precisamente inspirada na suas história de vida.

Com o seu A arte de driblar destinos, Celso Costa recebeu o Prémio LeYa de 2022, para originais anónimos, e foi assim uma verdadeira entrada “em grande” no universo das letras, ainda mais impressionante para quem dedicou a sua (longa) carreira profissional às ciências exactas.

Com efeito, Celso Costa começou por estudar Engenharia e Medicina antes de eleger definitivamente a Matemática, em especial a Geometria Diferencial, sobre a qual compôs a sua tese de doutoramento. E aí o autor, pode dizer-se, não é um estranho a honras e distinções: teve uma "superfície mínima" baptizada mundialmente em sua homenagem, a “Superfície Costa”, depois de ter descoberto a solução de um problema matemático com 206 anos. Em 1998 foi condecorado com a ordem nacional do mérito científico na classe de Comendador, pelo Ministério da Ciência e Tecnologia do Brasil. Recentemente, retirado do papel de professor universitário, que assumia desde 1981, Celso Costa estabelece-se assim, e agora, como uma revelação na Literatura.

É difícil destrinçar o "criador" do romance do menino no qual a narrativa se centra, já que os seus percursos são idênticos. O narrador e protagonista de A arte de driblar destinos passou os seus primeiros anos de vida numa propriedade localizada no interior do estado do Paraná, chamada “Ribeirão do Engano”. À medida que cresce, descobre a sua paixão e vocação para os números, e quando atinge a maioridade acaba por trocar o meio rural, onde sempre viveu, pelo ambiente cosmopolita da cidade de Curitiba, para prosseguir os estudos na universidade.

Num contexto familiar e social de agudas limitações financeiras e escassos recursos e oportunidades, no Brasil profundo dos anos 1950 e 60, a história narrada evidencia a importância da educação como agente propulsor da liberdade, para se ir além do que alguma vez se imaginava ser possível, e de voar por alturas mais elevadas.

A arte de driblar destinos lê-se, na verdade, quase sem darmos por isso. É um romance descontraído, bem-humorado, descomprometido. Através de um retrato vivo e vívido, a narrativa transporta-nos para um Brasil profundo, apaixonante e em bruto, que é sempre o cenário no desenrolar da história. Desperta, aliás, em nós, uma intensa vontade de adquirir um bilhete de avião só de ida (e talvz uma máquina do tempo, também) e conhecer aquela realidade com os nossos próprios olhos.

À falta de bilhetes, fica-nos a leitura. A escrita de Celso Costa consegue essa proeza de nos fazer viajar, pela forma como descreve os vários episódios, a cada página, imbuídos de uma autenticidade e simplicidade que nos desarma. Sempre presentes estão os elos e os dramas familiares, as amarguras da vida, e os seus momentos mais inebriantes, aqueles que quase pedem que nos belisquemos para ter a certeza de que estamos acordados.

Com 277 páginas, o romance divide-se em 44 capítulos, que nos contam as histórias e peripécias que o narrador vivencia durante o seu crescimento, entre os seus três anos até aos 19 anos. Com esta idade, começa um novo “capítulo” longe de casa, contrariando todas as probabilidades, ao agarrar a oportunidade de estudar, que lhe permite traçar um outro destino para si.

A linguagem informal e coloquial torna o romance leve e genuíno, e as castiças e singulares figuras que surgem no decorrer da narrativa, como o coveiro Cipriano Sombra, o ‘Faquir sertanejo’ ou o “prefeito” Malaquias Buarque, parecem ter sido retiradas de um engenhoso e criativo enredo cinematográfico. Há, também, o pai do menino, Zé Branco, que, de génio impetuoso, não mede as consequências dos seus actos, e a mãe, Nena, protectora mas de pulso firme. O jovem casal encanta e intriga o leitor com a suas personalidades fortes. 

O 44.º capítulo, intitulado “Desembarque do caipira”, é onde o percurso do leitor chega ao fim, mas onde se inicia a derradeira aventura do jovem "herói" da história, que finalmente conhece a capital do Paraná, nas circunstâncias em que estas linhas exprimem:

“Vindo de longe, tropeando seus sonhos desde o Ribeirão do Engano, ali está, sondando rumos, o caipira que nunca viu um semáforo, nem um prédio com mais de dois andares, e desconhece o mar.

O moço de tocos de barba despontando tem fome. Com a mochila aos ombros, arrastando a mala grande, anda alguns metros sem deixar a calçada de desembarque e entra no bar. O aroma é apetitoso, cheiro bom de café acabado de passar pelo coador de pano. Com olhos ávidos examina a pequena vitrine em cima do balcão e indaga ao atendente, num sotaque do interior:

– O que é que o senhor tem aí, de sal, pra comer? 

O rapaz atrás do balcão, entre estupefato e divertido, estreita os olhos, enquadra a cara do caipira e dispara:

– Temos sal!

É o primeiro tranco do novato na cidade grande. Sem alternativa e com medo de ser zoado de novo, opta pelo simples:

– Quero um copo de café com leite, meio a meio, e um pão com manteiga na chapa.

Ao pedido, o atendente coloca a cabeça no guichê e grita para a cozinha:

– Saindo uma canoa na chapa e uma média!

Uma média, uma canoa! Assim o novato conquista as primeiras palavras de um novo vocabulário.”

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