Esta semana, Gouveia e Melo – que em três anos de liderança como Chefe do Estado-Maior da Armada nada fez do que se pavonear, aproveitando um passado de seis meses como mestre de logística em 2021 – anunciou a passagem à reserva porque, palavras suas, “não faz sentido, depois de sair da Marinha, continuar como uma sombra relativamente à Marinha”.
Pessoalmente, nunca tendo eu sequer passado pela ‘tropa’ por razões oculares, entra-me pelos olhos uma evidência: Gouveia e Melo nunca será uma sombra para a Marinha; será sim uma lamentável e indelével nódoa.
Mesmo não comungando do militarismo, considero inegável o papel fundamental dos militares, tanto em tempos de paz como de guerra. Na verdade, é em paz que os militares exercem melhor o seu múnus, porque são eles que melhor percebem os horrores da guerra, assim melhor intercedem para um equilíbrio dos humores dos políticos. E é nessa linha que se espera dos militares, sobretudo daqueles que assumem especiais responsabilidades de topo, um código de honra e de compromisso com a instituição que servem, colocando o dever acima de vaidades pessoais ou ambições pessoas. Esse código de honra deveria traduzir-se em liderança pelo exemplo, em discrição e em resultados concretos, e não em protagonismos oportunistas que, longe de fortalecerem a instituição, a desgastam e a fragilizam. Gouveia e Melo personifica a falta de honra e a abundância de oportunismo.
O mais recente caso da anulação dos castigos a militares do NRP Mondego, decretado por um acórdão do Tribunal Central Administrativo do Sul (TCAS), é porventura o melhor exemplo para caracterizar um homem sem qualidades que chegou a um lugar que jamais deveria ter ocupado, mas que, hélas, o Princípio de Peter o estimula a seguir em frente, agora para Belém.
E a cereja no cimo deste nauseante ‘bolo’ é um comunicado de ontem à noite do gabinete de comunicação da Marinha, que foi, certamente, obrigada a emitir. E que deve ser confrontado com outro comunicado de Maio passado – citado pela imprensa, embora sem estar agora no seu site – de que fora “afastada, pelos tribunais administrativos, a suspeição sobre imparcialidade levantada pelos militares relativamente ao comandante da Zona Marítima da Madeira, na qualidade de oficial instrutor do processo, e ao comandante naval, na qualidade de entidade com competência disciplinar”.
Diz o seguinte este lamentável comunicado ao melhor do ‘sacode a chuva do capote’::
“Relativamente à notícia divulgada esta noite sobre o anulamento de castigos pelo Tribunal no âmbito do processo relacionado com o Navio Mondego, importa esclarecer que o processo em questão diz respeito ao castigo aplicado pelo Comandante Naval, e não pelo Chefe do Estado-Maior da Armada, como está a ser referido.”
Há neste comunicado, desde logo, uma postura inqualificável. Gouveia e Melo, desde o início deste incidente em Março do ano passado – quando 13 militares recusaram cumprir uma missão de acompanhamento de um navio russo ao largo da Madeira por falta de condições de navegabilidade do navio de patrulha –, quis aplicar logo castigos públicos, escondendo fragilidades e assim aumentar a sua aura de homem providencial – o homem providencial e populista que, ainda há pouco tempo, no passado mês de Maio, garantia que se “a NATO nos exigir, vamos morrer onde tivermos de morrer para a defender”. Deve ter falado por todos, menos por ele.
Recordemos que Gouveia e Melo, violando a decência e estuprando a honra militar, foi célere a ir à Madeira dar uma reprimenda aos militares do NRP Mondego em praça pública, em púlpito virado para as câmaras de televisão, logo no dia seguinte. Não foi só humilhante; foi um claro sinal de justiceirismo. Gouveia e Melo empenhou os meios da Marinha para aplacar a sua fúria sobre os militares que mostraram a vergonhosa situação de um país com uma quase inigualável História Naval, em vez de assumir falhas estruturais. Depois daquela aparição, e de notícias nunca desmentidas de que penas dos sargentos seriam agravadas para “sublinhar o grau de responsabilidade“, só se poderia esperar um julgamento militar justo sob uma condição: sem Goveia e Melo como Chefe do Estado-Maior da Armada.
Por esse motivo, quando o comunicado de ontem da Marinha – que, obviamente, ainda tem o dedo de Gouveia e Melo, pois somente deixará as suas funções no próximo dia 27 – diz que o acórdão do TCAS, iniciado com uma feliz formulação (“Em Nome do Povo”), se refere ao “castigo aplicado pelo Comandante Naval, e não pelo Chefe do Estado-Maior da Armada, como está a ser referido”, não entramos somente num jogo de semântica e de manipulação. Estamos perante uma descarada tentativa de desresponsabilização e de falsificação moral da realidade. Não é um mero jogo de palavras; é uma demonstração inequívoca de subversão dos factos para proteger a vaidade e o ego de quem prefere escapar ileso ao peso das suas acções. Isto não é liderança; é um exercício de mesquinhez que deixa, não uma sombra, mas uma nódoa de oportunismo e ausência de carácter.
Senão vejamos, e até ‘descontando’ o manifesto interesse de Gouveia e Melo, logo em Março do ano passado, de castigar os alegados insubordinados, descartando responsabilidades atribuídas a si, como líder da Marinha.
Com efeito, o acto considerado nulo pela TCAS não é um processo que “diz respeito ao castigo aplicado pelo Comandante Naval”. Aquli que foi considerado nulo foi objectiva e juridicaente o acto de 1 de Julho de 2024 de Gouveia e Melo, sendo citando logo a primeira página do acórdão, “proferido pelo CHEFE DO ESTADO MAIOR DA ARMADA – CEMA, que indeferiu o recurso hierárquico interposto” pelos militares.
E esse acto de Gouveia e Melo não é um acto de somenos importância, uma assinatura de cruz, a concordar com os castigos aplicados pelo Comandante Naval; é sim um longo despacho que o acórdão do TCAS transcreve ao longo de 13 páginas. Repito: 13 páginas, o que significa que houve uma, duas, três, quatro, cinco, seis, sete, oito, nove, dez, onze, doze, treze páginas, onde Gouveia e Melo – mesmo não as tendo escrito – concordou com todos os procedimentos seguidos pelos subordinados (e controlados) que conduziram o processo disciplinar aos militares que ele queria ver castigados.
Jamais pode Gouveia e Melo, com um pingo de decência, tentar passar pelos pingos da chuva e achar que nos consegue convencer que não foi conivente com a nomeação como instrutor de um oficial que foi envolvido nos factos que resultaram em responsabilidade disciplinar, que houve limitações na defesa dos militares e alegados atropelos na produção de prova e à pronúncia sobre a prova carreada para os autos.
Aliás, basta verificar a forma como o despacho – considerado cheio de nulidades pelo acórdão do TCAS – expressa a opinião de Gouveia e Melo face aos argumentos da defesa dos militares.
Vejamos no caso de ter sido nomeado um instrutor que esteve directamente envolvido nos acontecimentos – uma falha grave detectada pelo TCAS –, Gouveia e Melo escreve no despacho:
“Como tal, no meu despacho de 10.07.2023, para o qual remeto no aplicável, indefiro o incidente de suspeição do VALM CN [Vice-Almirante Comandante Naval], por não resultar dos autos qualquer evidência de um eventual preconceito ou interesse pessoal deste contra os Recorrentes, que possam indiciar, com o mínimo de objetividade, uma violação dos princípios de isenção e de imparcialidade, ao ponto de comprimir ou sonegar as suas garantias de defesa. Do supra exposto, resulta, então, inequivocamente, que o oficial instrutor e o VALM CN se encontravam plenamente legitimados para intervir no processo disciplinar, improcedendo, sem mais considerações, o que foi propugnado pelos Recorrentes sobre a falta de imparcialidade ou de isenção destes.“
Ou seja, Gouveia e Melo tinha obrigação de saber que havia uma ilegalidade, e fazer justiça – recusou e foi, assim, o responsável máximo pela concretização dos castigos, que se consumam apenas depois do recurso hierárquico
Sobre a situação de não ter sido concedidos os direitos aos militares durante o processo disciplinar – outra grave falha detectada pelo TCAS –, Gouveia e Melo escreve no seu despacho:
“Acresce também referir que, no âmbito do seu processo formativo, os militares são elucidados sobre os diplomas regulamentares fundamentais da Marinha, entre eles, o RDM [Regulamento de Disciplina Militar], pelo que não colhe invocar a ignorância sobre os conceitos legais aí prescritos, nomeadamente do direito ao silêncio e da constituição de defensor, para o efeito previstos no artigo 77.º e no n.º 3 do artigo 94.º, para arguirem, sem mais, a nulidade da prova produzida.“
Sobre o direito de os militares poderem requerer diligências, até para se provar que o NRP Mondego não reunia mesmo as condições de navegabilidade em 11 de Março – tanto mais que foram levantadas suspeitas de eliminação de provas sobre o estado do navio –, Gouveia e Melo mostrou-se extremamente claro em concordar com o instrutor. Vale a pena citar esta parte do seu despacho:
“Idêntico raciocínio e linha orientadora se aplica, aliás, à restante prova requerida, como o pedido de reconstituição dos factos ocorridos no dia 11.03.2023 no NRP Mondego com a presença de toda a guarnição, incluindo os arguidos, e submetidos às condições meteorológicas existentes à data. É que tal reconstituição, além de impertinente e dilatória, afigurava-se objetivamente inexequível, não só pela impossibilidade de se garantir o exato estado operacional do navio à data dos factos, como a questão das condições meteorológicas e da missão que lhe fora atribuída, neste caso, por ser impossível posicionar o navio russo no local e nas coordenadas em que se encontrava.
Concomitantemente, não se podia também deixar de atender aos elevados encargos financeiros que uma operação com essa envergadura acarretaria, para não mencionar os prejuízos para a atividade operacional e, por conseguinte, para o interesse público prosseguido pela Marinha.
Quanto à recusa do pedido de prova pericial, concretizado pela inclusão de um perito designado pela defesa para inspecionar o navio, deveu-se, essencialmente, ao facto de já ter sido efetuada uma inspeção técnica ordenada pela Superintendência do Material, do qual emergiu o devido relatório, traduzindo-se numa produção antecipada de prova, cf. artigo 419.º do CPP, subsidiariamente aplicável, justificada com o receio de vir a tornar-se difícil, senão impossível, a sua realização a posteriori e nas mesmas condições. E acresce que, ao contrário do pretendido pelos Recorrentes, sempre seria inadmissível a inclusão de peritos externos à Marinha, pois, tratando-se de um ramo das Forças Armadas, e ante as missões que lhes são cometidas, acarretaria riscos para a segurança nacional, que sempre se impõem salvaguardar.
Também não se mostra atendível o facto de terem suscitado a falta de imparcialidade do relatório junto do processo de inquérito que corre termos no DIAP de Lisboa sob o Proc. n.º 43/23.6NJLSB, pois, além da jurisdição disciplinar se distinguir da jurisdição penal, enquanto decorrência do princípio da independência previsto no n.º 1 do artigo 9.º do RDM, facilmente se infere que o simples facto de terem peticionado uma nova peritagem na instância criminal, não afasta nem sonega a prova pericial que foi admitida no processo disciplinar.“
Este tipo de argumento é extraordinário. Como pode o líder da Armada – com sonhos de ser um Presidente da República – blindar decisões questionáveis sob o manto da autoridade e do interesse público, sacrificando a justiça e os direitos dos seus militares? Argumentar que uma reconstituição dos factos seria “impertinente e dilatória” porque não se poderia recriar o “exato estado operacional do navio” ou as “condições meteorológicas” é desviar o foco do essencial: a busca pela verdade.
Como Presidente da República, irá também relativizar ou ignorar a lei sempre que considerar que o seu conceito de ‘interesse público’ é mais relevante? Esse padrão de comportamento não é apenas perigoso, mas profundamente incompatível com a dignidade do cargo que aspira ocupar.
Mais extraordinário ainda é Gouveia e Melo considerar inadmissível a inclusão de peritos externos à Marinha, sob o pretexto de riscos para a Segurança Nacional. Esta linha de raciocínio revela uma recusa em aceitar escrutínio independente, essencial para garantir a transparência e a credibilidade de qualquer investigação. A Segurança Nacional é uma preocupação legítima, mas invocá-la como obstáculo absoluto apenas levanta mais dúvidas sobre a lisura do processo.
Por fim, a rejeição da imparcialidade do relatório técnico, escudando-se numa suposta independência entre jurisdição disciplinar e penal, é um malabarismo argumentativo. É como se a existência de uma verdade objectiva fosse irrelevante, desde que os processos internos possam ser conduzidos sem questionamentos externos.
Por tudo isto, o comunicado da Marinha não faz mais do que reforçar a impressão de que há algo a esconder. Quando a lógica se torna um exercício de obstrução, em vez de um caminho para esclarecer os factos, o verdadeiro interesse público é o primeiro a ser traído.
Pessoalmente, até aceito que um cidadão queira salvar o coiro quando é apanhado com as calças na mão depois de uma patifaria. Mas, caramba, Gouveia e Melo é ainda um militar, líder da Armada e putativo candidato a Presidente da República, levado aos ombros por certa imprensa. Deveria, pelo menos, comportar-se como um adulto mediano, e assumir as suas responsabilidades no decurso de um processo disciplinar iníquo.
Quando um líder da Armada, com ambições presidenciais, opta por usar o peso da sua posição para esconder fragilidades e desviar responsabilidades, e ainda usa os recursos de comunicação para manipular a realidade, a mensagem que transmite não é apenas de fraqueza, mas de indignidade. Por isso, Gouveia e Melo mostra ser um homem sem qualidade – ou, pelo menos, um homem com uma única má qualidade: a mesquinhez.
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