Hélia Correia é uma das mais prolíferas escritoras portuguesas contemporâneas. Isto, por si só, não seria importante, se ela não fosse, ao mesmo tempo, uma das mais criativas e originais nos vários géneros literários que cultivou.
É de destacar, efectivamente, que, se a autora de A Casa Eterna se tem notabilizado como romancista, talvez, em grande parte, por ser este o género que mais atrai o público leitor e que por tanto, se abre a uma maior comunicabilidade, a verdade é que ela tem cultivado, com grande perfeição e rigor, os outros géneros básicos que costumamos considerar como constituindo a repartição integrante do vasto campo da literatura: o texto teatral e a poesia lírica.
Mas não fica por aí, o talento multímodo da autora que aqui consagramos. Notáveis são, também, os textos que escreveu para a infância, os quais parecem, muitas vezes, uma inevitável extensão da sua prodigiosa capacidade de efabulação, em busca de um público mais alargado.
Neles se desenvolve o seu imenso dom coloquial e oratório, como que em terra onde é mais propícia a fantasia desbridada e exuberante, do que naquela em que os adultos assentam os pés.
Devemos notar ainda que a importância da reflexão poética, sobre o trabalho literário, tem sido muito coerentemente defendida pela autora em entrevistas ou em breves excursos no interior da sua própria criação.
Parece-nos pertinente, antes de continuarmos esta nossa breve apresentação da obra da autora, dar a conhecer o corpus publicado por ela, até à presente data:
Ficção
O separar das águas (1981); O número dos vivos (1983); Montedemo (1983); Villa Celeste (1985); Soma (1987); A fenda erótica (1988); A casa eterna (1991); Insânia (1996); Lillias Fraser (2001); Fascinação seguido de A Dama Pé-de-Cabra de Alexandre Herculano (2004); Bastardia (2005); Desmesura: exercícios com Medeia (2006); Contos (2008); Adoecer (2010); Vinte degraus e outros contos (2014); O separar das águas e outras novelas (2015); Obras escolhidas (2015); Um bailarino na batalha, 2018.
Poesia
A pequena morte/Esse eterno canto [em díptico com Jaime Rocha] (1986); Apodera-te de mim (2002); A terceira miséria (2012); Acidentes (2020).
Teatro
Perdição: exercício sobre Antígona seguido de Florbela (1991); O rancor: exercício sobre Helena (2000); A teia (2013); As troianas (2018).
Para a Infância
Papagaios de Natal e outros contos (1977); A luz de Newton (1988); Sonho de uma noite de Verão (Shakespeare) – versão infantil (2003); Mopsos, o pequeno grego – O ouro de delfos (2004); Mopsos, o pequeno grego – A coroa de Olímpia (2005); A ilha encantada – versão infantil de A tempestade de William Shakespeare (2008); A chegada de Twainy (2011).
Prémios:
A casa eterna – Prémio Máxima de Literatura, 2000.
Lillias Fraser – Prémio de Ficção PEN Clube, 2001 e Prémio D. Dinis, 2002.
Bastardia – Prémio Máxima de Literatura, 2006.
Adoecer– Prémio Fundação Inês de Castro, 2010 e Prémio Especial do Júri Máxima de Literatura, 2011.
A terceira miséria – Prémio de Poesia das Correntes D’Escritas, 2013.
Prémio Vergílio Ferreira, 2013 – pelo conjunto da sua obra literária.
Prémio Camões, 2015 – pelo conjunto da sua obra literária.
Prémio Literário Guerra Junqueiro, 2021 – pelo conjunto da sua obra literária.
Acidentes – Prémio de Poesia PEN Clube, 2021
Coloquialidade, oratória hiperbólica e desenfreada imaginação bem podem ser as insígnias desta surpreendente escritora, tal como já referimos.
O espanto, face a essas qualidades, leva os críticos, quase sempre cheios de razão, a associar a sua produção às mais variadas tradições culturais e literárias.
Dessas ganharão base, provavelmente, as características da escritora que se desenvolvem entre uma luminosidade quase apolínea da construção da frase, e uma capacidade de construção do discurso ou dos episódios narrativos pautada pelo rigor da lucidez e apelo demoníaco do absurdo e da irracionalidade.
Alguns chamaram a esta torrente criativa uma escrita “camiliana”, pela sua dimensão paradoxal, apaixonada, luciferinamente luminosa e, simultaneamente, carregada de máculas da sombra e do mistério. Justifica mesmo, alguém, que “essa era uma maneira de dar nome a uma impressão de solidez”, dado que há sugestão camiliana “em qualquer escrita de desapiedada concentração conflitual”[1].
Outros apontam uma opção pelos processos caros ao surrealismo, ou ao visionarismo da alquimia, ou ao esoterismo gnóstico, como o que Maria Gabriela Llansol representa, sem que, contudo reconheçam, nesses traços, uma filiação definitiva da autora de A casa eterna.
O que fica quase sempre patente, na sua criação, seja ela ficcional, para adultos e para crianças, seja dramática ou lírica, é a capacidade de fazer emergir uma atmosfera etérea em que todos os acontecimentos narrados, ou todos os objectos e espaços descritos nos aparecem de uma forma que exalta a estranheza e insólito da sua própria ocorrência ou da sua simples presença.
Outros, ainda, vêem na notável versatilidade do seu imaginário uma marca dos grandes cultores do realismo fantástico. Ocorre compararem-na aos grandes mestres latino-americanos do género, quando acontece unir, à notação da ocorrência mais banal, a desenfreada representação das virtualidades fantásticas dos seus seres, ora angélicos, ora satânicos, ora ainda entes lançados em obscuros e labirínticos roteiros. Vem mesmo a propósito, para alguns críticos, a evocação de Gabriel García Márquez, para caracterizarem determinados processos narrativos da autora.
Tal evocação parece muito pertinente, pois uma das marcas mais fascinantes da escrita de Hélia é domínio e versatilidade com ela faz fluir, em contrapontos ou encadeamentos, os mecanismos da enunciação narrativa.
Grande parte da ambiência fantástica, da introdução insidiosa do terror, da atmosfera da perfídia ou do medo, é criada pela ausência de uma consciência autoral credível, ou de uma personagem estruturadora dos princípios do real, ou verosimilmente defensora dos valores de verdade. O seu discurso narrativo, como o de alguns dos grandes mestres do realismo fantástico, é sempre percebido como o discurso de “outra pessoa”, institucionalmente não-credível: os grupos femininos, o colectivo aldeão, o saber gnómico atribuído a entidades enigmáticas.
Este último traço remete-nos, por outro lado, quase sem surpresa, para uma tradição gerada pelo confluir das várias correntes do fantástico europeu, que tem o seu culminar em Kafka. Por muitos traços, sobretudo os que sustentam a sugestividade da sua ficção, a obra de Hélia Correia poderia ser comparada à do escritor checo de marcada origem judaica.
Em todas as suas histórias surge a acentuada intromissão do improvável, do surpreendente e do fantástico, sustidos pela perspectiva de uma personagem, ou de um narrador exterior à intriga mas que só raramente se apresenta como inteiramente credível.
É como se fossem abertas, mais estrondosa e incontrolavelmente do que é comum entre os ficcionistas, mesmo os que perlaboram em torno do surpreendente, as portas à aceitação das regras da efabulação, pela suspensão das regras da credibilidade.
O cenário privilegiado pela autora é, quase sempre, o do campo, com a sua variante do pequeno povoado rústico. É através desses microcosmos que o estado da civilização de uma região ou de um país, ou universo das grandes urbes, são avaliados.
Mesmo as histórias localizadas aparentemente na cidade, como é o caso de Soma, acabam por ter alguns dos seus momentos cimeiros nas zonas rústicas ou campestres. Esta tópica preferencial, alerta-nos para uma dimensão importante na obra de Hélia Correia que, por vezes, é esquecida, pelo facto de as dimensões de inquietação mística ou gnóstica, ou mesmo as da transfiguração fantástica se evidenciarem: a sua preocupação político-social.
De certa forma, num nível muito lato e demarcado de sectarismos (que, por vezes, comenta com ironia, distância, condescendência ou simpatia), a obra da autora de Lillias Frazer efabula, a partir de postulados ora alegóricos ora satíricos, visões do mundo que se colocam veementemente como críticas aceradas aos absurdos e contradições dos nossos modernos estados democráticos. E, nessa dimensão do libelo crítico, podem ser entendidas muitas das suas incursões no plano histórico, que ora colocam sob observação as condições sociais da mulher, ora evidenciam os confrontos de classe.
Estas tomadas de posição têm merecido algumas considerações entusiásticas, sobretudo da parte da crítica que se inscreve nos horizontes ideológicos e epistemológicos de feminismo. Pela posição que ocupam nas sociedades tradicionais, que são os espaços sociais preferidos pela autora, a ênfase da leitura “feminista” pode justificar-se. Mas, por outro lado, são muito pertinentes as observações que tendem a valorizar outras representações dos dinamismos sociais.
Efectivamente, por exemplo, os confrontos geracionais emergem em muitas das suas narrativas, quer pela constituição das imagens de fascínio, de recusa ou de receio que os indivíduos duma geração criam, em relação aos de outra, quer pela desmontagem dos laços familiares e de domínio que se prendem, igualmente, a essa dicotomia.
Os microcosmos que constituem, habitualmente, os cenários onde se desenvolvem as suas intrigas, remetem para a figuração, por vezes em moldes insólitos, dos mecanismos sociais, económicos e políticos.
Frequentemente, as dinâmicas de relacionamento são activadas pelo confronto de classes percebido pelos seus traços mais evidentes: o trabalho manual versus trabalho intelectual, reformados versus trabalhadores, patrões versos empregados ou empregadas, classe senhorial versus serviçais. Apresentando-se, quase sempre, em cenários sociais restritos e pouco desenvolvidos tecnologicamente, esses confrontos ganham, frequentemente, um traço insólito, ou mesmo uma luz de inquietante estranheza.
A última página do seu último livro, constituído por poemas e intitulado A terceira miséria, imediatamente antes do índice, apresenta uma lista de nomes de autores e de títulos.
Exprimindo, aí, uma dívida confessada, que vai de Ésquilo a Maria Gabriela Llansol, passando por Nietzsche ou Holderlin, a autora remete-nos para um último grande tópico que pretendíamos aqui enfatizar: a memória dos clássicos. É isso que explica o título deste longo poema dividido em 32 secções: «A terceira miséria é esta, a de hoje. / A de quem já não ouve nem pergunta. / A de quem não recorda».
O passado, para Hélia Correia é um retorno às fontes da poesia, sobretudo pela expressão lírica e pela escrita para teatro. Nesses géneros, tem privilegiado o diálogo com os clássicos gregos, um diálogo que também está presente nas histórias que escreveu para leitores mais novos e que têm como protagonista Mopsos, o pequeno grego.
Essa paixão pela Grécia, desde há muito presente na obra desta autora, desagua agora neste livro de poesia, onde a Grécia clássica surge como farol e como impossibilidade, paradoxo que faz parte da nossa cultura mas também do nosso posicionamento político: «Para onde olharemos? Para quem? / Certo é que Atenas se mantém oculta / E de algum modo intacta, por debaixo / Do alcatrão, do ferro retorcido. / Certo é que nunca ressuscitará / Visto que nada ressuscita».
[1] Cf. Fernando Venâncio, Colóquio Letras 123/124 p.385
Professor Emérito da Universidade de Évora