Na semana em que sucedem os relatos de problemas nas urgências de vários hospitais e nos serviços de Obstetrícia, foi divulgado hoje, pelo jornal Público, a publicação de um artigo na Acta Médica Portuguesa, uma putativa revista científica da Ordem dos Médicos.
Ler o suposto artigo científico e ler o correspondente artigo jornalístico que o divulga é ter um em dois: comprova-se o deplorável estado de validação da Ciência em Portugal e o lastimável percurso do Jornalismo, que deixou de ser o watchdog da sociedade para assumir a ignóbil tarefa de criar narrativas de marketing.
O (suposto) artigo científico da revista da Ordem dos Médicos, saído em Maio deste ano, intitula-se Um ano de covid-19 na gravidez: um estudo colaborativo nacional – ou One year of covid-19 in pregnancy: a national wide collaborative study, na sua tradução para inglês, língua em que surge escrito, com excepção de resumos em português. E é assinado por 28 autoras – todas mulheres, devido à especialidade –, sendo 26 médicas de serviços de obstetrícia e ginecologia de hospitais portugueses, uma investigadora da Universidade Nova de Lisboa e uma técnica da Direcção-Geral da Saúde.
Infelizmente, nenhuma teve a lucidez de achar que, com aqueles dados, e com a informação recolhida do tratamento dos dados, não tinha ali nada de científico, e muito menos para se retirar a seguinte conclusão: “A infeção pelo SARS-COV-2 na gravidez pode acarretar riscos aumentados para as grávidas e fetos. Recomenda-se uma vigilância individualizada nestes casos e a profilaxia desta população com a vacinação.” E sobretudo a segunda frase.
Mas fizeram, e todas assinaram pomposamente o artigo, e irão listá-lo nos respectivos currículos. Hipócrates, entretanto, dá voltas no túmulo. Alberto Magno dá piruetas para a esquerda. Francis Bacon para a direita.
E mais grave do que isso, os editores da Acta Médica Portuguesa, nos quais se destaca o editor-chefe Tiago Villanueva (médico de família na Unidade de Saúde Familiar Reynaldo Santos, na Póvoa de Santa Iria), permitiram que fosse publicado, assim como foi, o dito “estudo”. Vergonha alheia.
Não se diga que não tiveram tempo de reflexão. O artigo foi recebido na Ordem dos Médicos em 17 de Maio do ano passado, foi aceite em 27 de Outubro, até esteve publicado online (sem qualquer relevo) desde 11 de Fevereiro, e saiu na revista em 2 de Maio.
O Público lembrou-se agora, e não vou discutir critérios e timings editoriais, em dar-lhe parangonas de destaque, sob o título “Covid-19 pode implicar risco acrescido em grávidas e fetos”, fazendo eco das conclusões das autoras do estudo no sentido de se fazer “uma vigilância individualizada nestes casos” de infecção pelo SARS-CoV-2 (uma recomendação óbvia, aplicável a todas as doenças, presumo eu que nem sou médico).
E acrescentando ainda a mensagem central: recomenda-se “a profilaxia desta população [de grávidas] com a vacinação”
Sejamos claros.
Usar a Ciência, para tomar decisões políticas, é meritório.
Abusar da Ciência, manipulando-a, para tomar decisões políticas, é vergonhoso, ainda mais quando a Comunicação Social serve de instrumento.
Este estudo é uma anedota. Porque sendo um mero estudo observacional é meramente descritivo e, portanto, serve para pouca coisa, e nunca para conclusões daquela jaez. Não é um estudo de coorte, nem pode ser de caso-controle, nem é transversal nem ecológico, nem nada que se pareça com um estudo epidemiológico.
Meramente descreve, e pouco, e de forma agregada, a evolução de um conjunto de 630 grávidas portuguesas com teste positivo à covid-19, sem sequer apresentar comparação com as afecções decorrentes de outras infecções respiratórias em anos anteriores ou com as complicações gerais no decurso das gravidezes e partos; sem sequer comparar com grávidas que estivessem ao longo de 2021 vacinadas; e sem recolher dados que permitisse apontar hipóteses de explicações para os (pouquíssimos) casos graves relacionados com a covid-19.
O “estudo” é uma inutilidade, uma anedota científica.
Deveria servir, nas universidades, para duas coisas: ou para ensinar os alunos sobre o que não se deve fazer num estudo; ou chumbar os alunos que fizessem um estudo assim.
Quando muito, este “estudo” deveria merecer de editores científicos mais compaixão do que publicação: as autoras imaginaram mesmo que poderiam fazer um estudo desta natureza (e vê-lo numa revista científica) com base em 630 gravidezes entre Março de 2020 e Março de 2021! Seiscentas e trinta gravidezes! E depois acharam que poderiam retirar conclusões para todo o universo das quase 200.000 gravidezes que já se registaram em Portugal desde o início da pandemia, e também para as 85 mil mulheres que, em cada ano, vierem a engravidar.
Não há, para as autoras, necessidade sequer de introduzir um singelo grupo de controlo (grávidas sem covid-19, vá lá, tiradas ao calhas) para comparar? Ó céus!
Publicarem uma coisa destas numa (mesmo que suposta) revista científica com uma amostra deste tamanho, só pode ser porque a revista científica não é científica coisa nenhuma. E também revela a falta de cultura científica nas unidades de saúde portuguesas, a começar pelo desenho dos estudos, pela colecta dos dados e pela análise crítica (ou ausência) dos resultados e até onde se pode ir nas conclusões.
Mas publicou-se. E ficamos a saber que das 630, nenhuma morreu, quase dois terços estiveram assintomáticas (só souberam que estavam com covid-19 porque fizeram teste) e apenas 10 (1,5%) estiveram em UCI, embora apenas 2 ventiladas (0,3%).
Duas mulheres ventiladas em 630: é isto preocupante do ponto de vista de Saúde Pública? Foi só por causa da covid-19 que estas duas em 630 foram ventiladas? As autoras nada dizem, porque não sabem, porque não apresentaram comparações. Na verdade, sabiam bem que o seu “estudo” valia nada do ponto de vista científico, mas arrogam-se no direito de defender: vacinem-se todas as grávidas. E acham que isto é Ciência.
Não pode bastar-nos que escrevam, na introdução do resumo do artigo, o seguinte: “Apesar do risco da covid-19 na gravidez poder ser acrescido, são necessários estudos em larga escala para o melhor conhecimento do impacto desta infeção nesta população.”
Porque, na verdade, isto é uma mera confissão: o que fizemos não foi um estudo. Foi uma “coisa”… Mas, com esta “coisa”, recomendam depois “a profilaxia desta população com a vacinação”. Expliquem-me como é que, com “coisa” tão malparida, se afirma peremptoriamente uma coisa destas?
Aliás, ao longo do “artigo científico” (escrevamos com aspas), nem sequer se quantifica o risco (senhores e senhoras autoras do artigo, um risco tem de ser quantificado) para se retirar qualquer conclusão digna desse nome.
Ora, mas o objectivo desta “coisa” foi óbvio e claro, mas não-científico: contribuir para a narrativa, dar um argumento supostamente científico na promoção da vacinação das grávidas, sem sequer se apresentar um estudo decente sobre os efeitos benéficos (que poderá haver) e/ou eventualmente prejudiciais (que também poderá haver).
Minhas senhoras e meus senhores: só com análises rigorosas e científicas se pode concluir por uma recomendação ou por um desaconselhamento. Não é com uma “coisa” como esta assinada por 28 pessoas, muito doutas, certo, mas sem ética científica.
Este é, para mim, mais um exemplo paradigmático do estado da Ciência em época pandémica: querendo-se, uma determinada entidade usa o seu prestígio do passado – como a Ordem dos Médicos – para “prostituir” a Ciência, abusando dela para transmitir uma narrativa, bastando que uma Comunicação Social acrítica e/ou colaborativa faça as necessárias parangonas, agora sempre com o famigerado e vergonhoso “PODE” no título.
Em suma, blá blá blá…, isto é Ciência, e vacinem-se. Uma vergonha.
Ao longo da pandemia viveu-se, de facto, assim. Com pseudociência e pseudo-jornalismo. E não deveria ser. Não pode ser.
Enquanto isto, faltam obstetras nos hospitais portugueses. E o Serviço Nacional de Saúde num caos. E isso mata. Tem-se visto.