Ouvi uma análise que me pareceu realista sobre o actual momento da guerra na Ucrânia. Referia o cansaço da opinião pública sobre o tema e a prova dos nove na solidariedade com o povo ucraniano, agora que a vida dos europeus começa a ficar caótica por causa da subida das taxas de juro e o aumento galopante da inflação.
Uma coisa é estarmos sentados no sofá a pedir mais sanções contra os russos; outra, bem diferente, é quando nos dizem que, afinal, nos vão levar o sofá. É mais ou menos nesse ponto que estamos.
Um presidente de uma confederação de sindicatos alemães avisou, ontem, que a quebra de fornecimento de matérias-primas russas estava a colocar toda a indústria germânica em risco. O colapso pode estar iminente e uns milhões de empregos também. A Alemanha é o motor da Europa: se espirram os outros constipam-se.
Aquele sentimento de empatia que os europeus dispensaram a um povo que sofre, aqui ao lado, começa a ficar para segundo plano quando, por causa dessa guerra, o nosso próprio modo de vida está ameaçado. No fundo, assim que a solidariedade nos custou mais do que simples bandeiras no Facebook, resolvemos tratar da vidinha.
Começa, pois, a fase mais “palestiniana” para os invadidos no Donbass: a malta sente a vossa dor e temos pena que tenham ficado sem casa, mas a Lagarde disse-nos que também quer ficar com a nossa. De modo que é altura de fazer contas à vida.
Isto leva-nos a duas conclusões simples.
A primeira é que a solidariedade com os povos é bonita, mas apenas quando não nos sai da pele.
A segunda é que, agora, a mesma guerra que nos levou a “defender” os invadidos nas redes sociais, serve como desculpa para os deixar de mãos a abanar.
No nosso dia-a-dia, a cada subida de preços de serviços, não há quem não use esta guerra como justificação.
Já perdi a conta aos aumentos estapafúrdios com base na invasão russa. Pedreiros que aumentam o preço hora; jardineiros que dobram o seu custo; empresas familiares (ou não), com os mesmíssimos salários e custos, sobem 50% o preço do seu trabalho por causa da gasolina mais cara. A própria gasolina que “NÃO VEM DA RÚSSIA” atinge preços incríveis com a desculpa da Ucrânia. Empresas de software que cobram mais sem que se perceba porquê. Onde é que uma licença de software sofre por causa de uma guerra?
Ou seja, o cenário está criado e as empresas aproveitam para aumentarem os lucros, muito para lá da compensação exigida pela inflação. No topo de tudo isto, aparecem os bancos com carta branca para fazerem o que bem lhes apetecer. No caso nacional, ainda com a particularidade de serem instituições privadas quando escolhem o lucro, mas públicas na altura de serem salvas. De facto, só mangas e jacas não crescem no meu país, de resto tudo se dá.
O engraçado desta história é o círculo perfeito da opinião pública e publicada. Quando os governos europeus decidiram as sanções à Rússia e o fornecimento de armas à Ucrânia, a maioria concordou. Poucos, pouquíssimos, nos jornais e televisões disseram que a paz não se alcança com mais armas.
Lembro-me de, na altura, ter pensado (e escrito) para onde queriam os nossos governantes ir? Derrotar a Rússia? Envolver a NATO? Combater até ao último ucraniano? Nunca entendi que fim esperavam os países da União Europeia com esse apoio. Dos Estados Unidos percebi, aliás, eles explicaram: desgastar a Rússia. Tudo bem. Para eles.
Agora nós, europeus, que saída tínhamos de não empobrecer com isto sem que chegássemos a uma mesa de negociações? Nenhuma. E quanto mais tarde lá chegássemos, pior.
Inicialmente, eram só os combustíveis. Um clássico da extorsão, a malta ainda aguenta. Depois foi a inflação, os salários, as greves, a perda do poder de compra e a machadada final dada pelo Banco Comercial Europeu (BCE), as taxas de juro. Julho chegou e os aumentos nas prestações estão aí. Num país pobre, como o nosso, é isto uma sentença de morte e uma bomba-relógio social.
Enfim, começou a arrefecer a solidariedade e a chegar o nervoso miudinho. Como é que vamos pagar a casa com juros a 4%? Nas televisões já falam no ponto de viragem e da onda de choque trazida pela guerra que, quatro meses depois, chega finalmente ao nosso quotidiano com força destruidora.
Nos jornais já nos perguntam o que fazer com todo o arsenal que ficará na Ucrânia depois da guerra. Os comentadores já se dividem entre o “continuar a enviar armas” e o “dificilmente não teremos negociações e cedência de território”.
Ninguém o quer dizer alto porque pensa “e se fôssemos nós?”, mas depois recebem o aviso do banco com a nova prestação situada 300 euros acima “por causa da guerra”, e já só querem que os ucranianos desistam do Donbass. E isto mesmo que o Donbass seja apenas a desculpa que o banco utilizou para nos sacar mais dinheiro. O mercado, o eterno mercado que ninguém percebe e que mesmo assim segue.
E fecha-se o círculo: de exaltados apoiantes de sofá a envergonhados ausentes… carregados de dívidas.
Pobres ucranianos.
Engenheiro de desenvolvimento na EcarX (Suécia)
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