Continua sem existir uma justificação documental (e plausível) para o desaparecimento da base de dados da Morbilidade e Mortalidade Hospitalar retirada do Portal da Transparência pelo presidente da Administração Central do Sistema de Saúde (ACSS). Do gabinete da ministra da Saúde remete-se a responsabilidade para a ACSS, presidida por um amigo de longa data de Marta Temido, com quem esteve lado a lado no passado dia 7 na apresentação do novo Estatuto do SNS. A ministra nega razões políticas, mas não responde sobre se vai fazer algo para que seja retomado o acesso público daquela base de dados.
Victor Marnoto Herdeiro, presidente da Administração Central do Sistema de Saúde (ACSS), continua sem identificar quais foram as razões técnicas que levaram aquele instituto público – sob alçada directa da ministra Marta Temido, sua amiga de longa de longa – a expurgar a base de dados da Morbilidade e Mortalidade Hospitalar, onde constam dados que revelam a situação caótica do Serviço Nacional de Saúde e desmentem muitos aspectos da narrativa oficial do Governo.
A base de dados permitiu ao PÁGINA UM elaborar um dossier de investigação jornalística, que já contava com nove artigos, publicados entre 13 de Maio e 23 de Junho. O seu expurgo impede o acesso a dados mais actuais, posteriores a Janeiro deste ano, impossibilitando assim uma melhor avaliação do desempenho do SNS e das políticas públicas do actual Governo.
Esta base de dados foi criada em 2018, sendo um sistema de informação de suporte à monitorização do desempenho dos hospitais do SNS.
Em concreto, este sistema recolhe dados administrativos, incluindo codificação clínica, permitindo apurar a evolução mensal, desde Janeiro de 2017, de episódios de internamentos, ambulatório e óbitos por capítulo de diagnóstico (por grande grupo de doença) em cada hospital ou centro hospitalar, por grupo etário e sexo. Tem também a particularidade de conseguir identificar a evolução dos internamentos e desfechos da covid-19, uma vez que, neste caso concreto, esta é a única doença do grupo denominado “Códigos para fins especiais”.
Certo é que o responsável da ACSS – que assumiu sem esclarecer a retirada da base de dados da Plataforma da Transparência, alegando “análise interna” – foi uma escolha directa e pessoal da actual ministra para aquele posto. Aliás, Marta Temido presidiu àquele instituto desde 2016, quando em 2018 foi convidada por António Costa para integrar o Governo.
Victor Herdeiro demorou três anos a conseguir o cargo antes ocupado pela sua amiga Marta Temido, quando então ocupava a vice-presidência da Agência de Investigação Clínica e Inovação Biomédica, uma entidade pública, mas com ligações à APIFARMA. Antes daquele cargo, Herdeiro tinha sido presidente da Unidade Local de Saúde de Matosinhos, que gere o Hospital Pedro Hispano.
Os laços entre Marta Temido e Victor Herdeiro são bastante estreitos e de longa data. Ambos tiraram o curso de Direito, tendo-se cruzado nos corredores da Universidade de Coimbra, embora o actual presidente da ACSS seja mais velho (nasceu em 1969, enquanto Temido nasceu no início de 1974). No entanto, passaram a ter contactos estreitos há cerca de duas décadas, porque ambos ingressaram na carreira de administradores hospitalares.
Na Associação Nacional de Administradores Hospitalares (APAH) – uma poderosa agremiação por via das ligações políticas e dos financiamentos das farmacêuticas –, Victor Herdeiro e Marta Temido compartilharam mesmo três mandatos ao longo de nove anos: 2008-2011, 2011-2013 e 2013-2016.
Nos dois primeiros, Temido foi tesoureira e Herdeiro vogal, enquanto naquele último triénio a actual ministra presidiu à APAH, mantendo-se Herdeiro como vogal. Já sem Marta Temido nos órgãos sociais desta associação, Victor Herdeiro foi vice-presidente no mandato de 2016-2019. Ambos são também “responsáveis” pelo convite a Alexandre Lourenço para presidir à APAH há seis anos, como o próprio confessou em Março último.
Apesar destas relações íntimas, e do expurgo da base de dados da Morbilidade e da Mortalidade Hospitalar beneficiar Marta Temido, o Ministério da Saúde insiste nada ter a ver com a decisão de Victor Herdeiro, que se mantém silencioso, não apresentando ao PÁGINA UM, conforme solicitado, qualquer documento que ateste a necessidade de uma “análise interna” da informação que esteve até Maio no Portal da Transparência.
Por insistência do PÁGINA UM, um porta-voz da ministra da Saúde insiste que “não houve qualquer intervenção de qualquer membro do Governo ou dos seus gabinetes na retirada do referido indicador do Portal da Transparência, nem tal intervenção foi suscitada pela ACSS, seguramente em razão de tal retirada ter obedecido a critérios estritamente técnicos e na esfera da competência da ACSS”. E acrescenta que, “dessa forma, não se suscita qualquer comentário político sobre a matéria.”
Tendo em consideração que actos técnicos desta natureza necessitam de ordens escritas expressas – até porque manifestamente terão de ser justificados os procedimentos inerentes à tal “análise interna” –, o PÁGINA UM irá recorrer ao Tribunal Administrativo para que Victor Herdeiro seja obrigado a justificar-se. Ou, pelo menos, a admitir publicamente que a sua ordem foi verbal, e portanto sem justificação técnica, embora com óbvios benefícios político-partidários.