PANDEMIA

Filipe Froes tem incompatibilidades para ser consultor da Direcção-Geral da Saúde

silver and black stethoscope on 100 indian rupee bill

por Pedro Almeida Vieira // Janeiro 4, 2022


Categoria: Exame

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O mediático pneumologista do Hospital Pulido Valente, que acumula com a coordenação do gabinete de crise da Ordem dos Médicos para a pandemia, é um dos médicos portugueses com maiores ligações à indústria farmacêutica. Mas tem mantido o seu estatuto de consultor da Direcção-Geral da Saúde porque alegadamente nunca ultrapassou o limite financeiro previsto por lei. O PÁGINA UM desvenda agora a contabilidade pessoal e empresarial de Filipe Froes – incluindo os montantes pagos por 22 farmacêuticas. E revela ainda que ele entrou em incompatibilidade a partir deste ano.


O pneumologista Filipe Froes – uma das figuras mais mediáticas durante a pandemia – está em risco de perder o seu estatuto de consultor da Direcção-Geral da Saúde (DGS) por ultrapassar o limite de 50.000 euros anuais pagos por farmacêuticas no último quinquénio (2017-2021). Essa apetecível função, embora não remunerada, permite a certos profissionais de saúde acederem directamente às autoridades de Saúde e integrar grupos de trabalho ou equipas com poder de decisão em matérias normativas, abrindo assim possibilidades para as farmacêuticas exercerem “lobby” e terem eventualmente acesso a informação privilegiada.

Para evitar conflitos de interesse, um decreto-lei de 2014 estabeleceu, entre outros impedimentos, que estes consultores não podem receber mais de 50.000 euros por ano provenientes de “empresas produtoras, distribuidoras ou vendedoras de medicamentos ou dispositivos médicos”. Porém, esse limite máximo deve ser calculado com base na média móvel de cinco anos, embora o diploma legal não estabeleça quem ou como tal se inspecciona. Cabe a cada consultor, voluntariamente, atestar por escrito, num formulário, com uma simples cruz, que não tem qualquer incompatibilidade legal.

Mostra-se, porém, notório que Filipe Froes – auferindo verbas tanto em nome individual como da sua empresa Terras & Froes, da qual é gerente desde 2012 – tem procurado, nos anos mais recentes, “gerir” os montantes recebidos das farmacêuticas para nunca ultrapassar o limite legal, embora esse exercício contabilístico possa tornar-se impossível de manter face aos montantes que recebeu em 2021. Pelo menos se houver oficialmente cruzamento de dados contabilísticos. A última declaração de ausência de incompatibilidades que Filipe Froes entregou na DGS data de 10 de Maio de 2021.

Filipe Froes, durante um webinar em Abril de 2021, patrocinado pela Ascensia Diabetes Care, Boehringer Ingelheim, Roche, Gasomed e Medtronic, intitulado “Um ano de covid-19 ou o bom, o mau e o vilão”.

De acordo com a investigação do PÁGINA UM, Filipe Froes ultrapassou, desde 2013, a fasquia dos 50.000 euros anuais por três vezes (2016, 2018 e 2021), mas quando calculada a média móvel de cinco anos fica sempre ligeiramente aquém desse limiar.

Através dos valores registados no Portal da Publicidade e Transparência do INFARMED, a média móvel de cinco anos dos recebimentos de Filipe Froes foi de 35.949 euros em 2017, de 44.043 euros em 2018, de 45.125 em 2019, de 45.457 em 2020, e de 45.349 em 2021. Ou seja, por aqui, até agora, nunca terá ultrapassado o valor “proibitivo”. Mas por uma “unha negra”.

Ora, mas os valores constantes do portal do INFARMED referem-se tanto a verbas recebidas por Filipe Froes em nome individual como pela sua empresa Terras & Froes. E é no cruzamento contabilístico dessas duas “fontes” que se observam discrepâncias que podem, por um lado, indiciar “contabilidade criativa”, e, por outro lado, prenunciam, para já, uma incompatibilidade para o quinquénio 2017-2021.

Com efeito, analisando todos os relatórios e contas anuais da Terras & Froes entre 2016 e 2020 (o último ano acessível) – como o PÁGINA UM fez –, as receitas (prestações de serviços) obtidas foi, para este quinquénio, de 47.271 euros. Assim, caso Filipe Froes venha a contabilizar na sua empresa os montantes pagos pelas farmacêuticas, e registado no portal do INFARMED, durante o ano de 2021 (56.097 euros), a média móvel passará a ser, para o quinquénio 2017-2021, de 50.381 euros. Ou seja, superará então os 50.000 euros, resultando assim numa incompatibilidade. Nessas circunstâncias, Froes não se pode manter como consultor da DGS.

Contudo, não será de estranhar que Filipe Froes tente contornar esse “problema” como em anos anteriores parece já ter feito. De facto, no seu caso particular, observam-se grandes discrepâncias entre os valores registados no Portal da Transparência e Publicidade (onde se obtém supostamente os pagamentos a título individual e os feitos à sua empresa) e aqueles que contam nas contas da Terras & Froes.

Por exemplo, em 2016, Froes declarou que recebeu 56.637 euros ao INFARMED das farmacêuticas, mas na contabilidade oficial da sua empresa aparecem apenas receitas anuais de 40.547 euros. Em 2020, Froes declarou no INFARMED apenas ter recebido 41.474 euros das farmacêuticas, embora as suas contas empresariais apontem 74.293 euros de proveitos, isto é, uma diferença de quase 33 mil euros.

Receitas (em euros) de Filipe Froes declaradas pela sua empresa Terras & Froes e proveitos registados na Plataforma da Transparência e Publicidade do INFARMED.

Recorde-se que, em Novembro passado, o semanário Novo anunciou que Filipe Froes estaria a ser alvo de um inquérito de averiguações pela Inspecção-Geral das Actividades em Saúde sobre as suas relações profissionais e financeiras com as farmacêuticas. As conclusões ainda não foram divulgadas.

Apesar de trabalhar em exclusividade no Serviço Nacional de Saúde (SNS), Filipe Froes é um dos médicos portuguesas com maiores relações com as farmacêuticas, que aumentaram com a sua exposição pública no decurso da pandemia. Além de coordenar uma unidade de cuidados intensivos do Hospital Pulido Valente, este pneumologista também lidera o Gabinete de Crise da Ordem dos Médicos para a Covid-19 e tem, nos últimos dois anos, como consultor da DGS, participado activamente na elaboração de normas técnicas relacionadas com a pandemia.

De acordo com o Portal da Transparência e Publicidade, Froes estabeleceu, desde 2013, um total de 263 contratos comerciais, em seu nome ou na Terras & Froes, envolvendo 22 farmacêuticas. O montante global já alcançado é de 380.932 euros, o que representa um “salário” médio mensal superior a 3.500 euros nos últimos nove anos. Nos dois anos da pandemia (2020 e 2021), o pneumologista encaixou uma média mensal de 4.065 euros, superior ao que ganha como médico do SNS.

No ano passado, este médico – que, como consultor da DGS, é um dos responsáveis pela determinação das terapêuticas contra a covid-19 – teve como principal beneficiário a Merck Sharp & Dohme, que lhe pagou 22.825 euros, sobretudo por palestras e webinars. Por cada uma, Filipe Froes recebeu valores que rondam os 1.100 euros, e mesmo mais, por vezes.

Verbas recebidas por Filipe Froes, por ano e farmacêutica. Fonte: INFARMED

Saliente-se que a Merck abandonou, há alguns meses, a “corrida” para as vacinas contra a covid-19, apostando agora sobretudo na comercialização de um anti-viral, o molnupiravir, já aprovado nos Estados Unidos e Reino Unido, mas ainda a aguardar decisão da Agência Europeia do Medicamento.

Filipe Froes já teceu elogios a este medicamento – sem nunca emitir qualquer conflito de interesses. Por exemplo, em declarações em Novembro ao jornal Nascer do Sol, Froes considerou que o novo fármaco é “sem dúvida (…) um game-changer”, um complemento à vacinação, e garantindo também que “reduz a carga viral e reduz em 50% a gravidade da doença”.

Apesar do reforço em 2021 do contributo da Merck nas finanças pessoais e empresariais de Filipe Froes (85.322 euros recebidos desde 2013), a Pfizer continua a ser a número um. Embora nos últimos dois Froes tenha auferido apenas 12.196 euros desta farmacêutica, o pecúlio acumulado desde 2013 é substancial: 134.574 euros, com o ano de 2016 a atingir os 47.544 euros). No ano passado, Filipe Froes realizou pelo menos 13 palestras financiadas por esta empresa norte-americana, quase sempre tendo a covid-19 como tema central.

A terceira farmacêutica mais lucrativa para Filipe Froes é a Bial, que desde 2013 lhe rendeu 47.339 euros. A farmacêutica portuguesa, sedeada na Trofa, tem interesses comerciais na área da pneumologia (doença pulmonar obstrutiva crónica e asma brônquica). Um dos apoios mais substanciais que o pneumologista recebeu destinou-se à sua participação no CHEST Annual Meeting que se realizou em Outubro de 2019 em Nova Orleães, nos Estados Unidos. Froes embolsou 9.960 euros e mais 50 cêntimos.

A francesa Sanofi – a principal produtora de vacinas contra a gripe –, a anglo-sueca AstraZeneca – uma das produtoras de vacinas contra a covid-19 –, a norte-americana Gilead Sciences e a alemã Bayer Portugal também têm sido relevantes “clientes” de Filipe Froes. No caso específico da Gilead Sciences, as mais recentes colaborações de Filipe Froes são polémicas. O pneumologista integrou o conselho consultivo (advisory board) do fármaco remdesivir – um anti-viral criado para tratamento do ébola, e cuja eficácia contra a covid-19 foi prometida, mas que se manifestou um logro –, enquanto tinha poderes de aconselhamento para a sua aplicação em doentes. A própria Organização Mundial de Saúde (OMS) acabou mesmo por fazer uma recomendação contra o seu uso em Novembro de 2020. Contudo, Filipe Froes sempre se mostrou favorável, desde o início da pandemia, ao seu uso, e a Comissão Europeia comprometeu todos os Estados-membro a fazerem compras massivas à Gilead. No caso português, a DGS adquiriu, em finais de 2020, doses no valor de cerca de 20 milhões de euros.

Por esta prestação à Gilead, desenvolvida ao longo de 2020, Froes recebeu 4.330 euros, a que acresceram mais 3.690 euros em webinares sobre este fármaco. Mesmo depois dos conselhos contrários da OMS, Froes nunca se cansou de elogiar o remdesivir, e de mantê-lo, nas normas da DGS, como um medicamente a usar. Por exemplo, em Março de 2021, no âmbito do webinar “Avanços no tratamento antiviral da covid-19”, patrocinado pela Gilead, este médico (que recebeu 1.230 euros por este evento) manteve-se um adepto incondicional. Em declarações à revista digital Médico News, sem referir o seu estatuto de conselheiro da Gilead, o pneumologista garantia que “vários estudos publicados em revistas médicas de elevado factor de impacto têm documentado a utilidade do remdesivir em subgrupos de doentes hospitalizados”.

O PÁGINA UM tentou obter comentários de Filipe Froes sobre os seus financiamentos da indústria farmacêutica, mas não obteve resposta.

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