O registo de doentes-covid pelo Ministério da Saúde inclui largas centenas de internamentos por quedas, trambolhões, escorregadelas e contusões por objectos. Estes doentes entraram na base de dados da covid-19 porque testaram positivo na admissão hospitalar. O PÁGINA UM teve acesso a informação clínica dos doentes-covid até Maio do ano passado, e contabilizou mais de 1.200 casos de hospitalizações nestas circunstâncias. Destas pessoas, 266 morreram, muitas num prazo muito curto. Mas todas foram contadas pelo Governo como vítimas da pandemia. Veja, no final do artigo, os casos mais bizarros.
Em finais de Janeiro do ano passado, um homem de 60 anos caiu de uma janela no dia em que foi internado num hospital do Grande Porto – que o PÁGINA UM conhece mas não divulga para preservação da identidade num evento trágico. Era um doente terminal, com cancro do pâncreas e neoplasias secundárias no fígado. Tinha também covid-19 com manifestação de hipoxemia. A queda da janela, provavelmente suicídio, causou-lhe morte imediata. Porém, entrou nas estatísticas oficiais dos óbitos-covid da Direcção-Geral da Saúde.
Este foi um caso raro num episódio de desespero, mas a base de dados do Serviço Nacional de Saúde (SNS) possui, na verdade, centenas e centenas de internados contabilizados como doentes-covid que foram hospitalizados por causas nada relacionadas com a pandemia, como sejam quedas no soalho, de camas, de varandas ou janelas, devido a escorregadelas ou tropeções ou colisões contra objectos.
Em muitos casos, os danos físicos foram muitíssimo graves, incluindo traumatismos cranianos, membros partidos ou afectação de outros órgãos. No total, até Maio de 2021, terão ocorrido pelo menos 266 óbitos atribuídos à covid-19 de pessoas cujo internamento foi subsequente a quedas e acidentes similares.
Numa parte dos casos, a morte surgiu no próprio dia ou nos dias seguintes face à gravidade dos traumatismos. Porém, entraram na contabilidade dos casos e mortes por covid-19 porque, na admissão no hospital, tiveram teste positivo ao SARS-CoV-2.
Numa análise detalhada do PÁGINA UM à base de dados do SNS, contabilizam-se pelo menos 1.207 casos de internamento até Maio de 2021 em que, subjacente à hospitalização inicial, estiveram quedas, em alguns casos especificadas (soalho, varanda, cadeira, cadeira de rodas ou cama).
Em diversas situações, os traumatismos da queda podem ter sido subsequentes a um outro evento (como um ataque cardíaco ou um acidente vascular cerebral), mas na esmagadora maioria das situações tratou-se de quedas acidentais. Não consta, nem nos registos, nem em artigos científicos com peer review, que o SARS-CoV-2 possa ser responsável ou co-responsável por qualquer queda, trambolhão ou escorregadela.
Nesta base de dados do SNS – convenientemente anonimizada, como exige o Regulamento Geral de Protecção de Dados e determina a deontologia jornalística – estão incluídos todos os diagnósticos clínicos e as comorbilidades antes e durante o internamento, seguindo os códigos da Classificação Estatística Internacional de Doenças e Problemas Relacionados com a Saúde (CDI), aprovada pela Organização Mundial da Saúde (OMS). Os registos das doenças, maleitas e lesões (directas e sequelas) de cada doente surgem ordenadas cronologicamente (a partir do 0, embora sem referência à data de cada). Deste modo, sempre que as quedas (com o código iniciado pela letra W na CDI) constam nas primeiras linhas do registo individual, e geralmente antes do diagnóstico covid-19 (com o código U071 da CDI), mostra-se evidente que foram os traumatismos per si os responsáveis pelo internamento.
De acordo com a informação analisada pelo PÁGINA UM, 86% das pessoas do grupo dos internados por traumatismos resultantes de quedas e contusões contra obstáculos – que não inclui acidentes rodoviários ou com maquinaria – tinham mais de 65 anos. Em termos absolutos, até Maio de 2021, a base de dados do SNS registou 178 internamentos por traumatismos desta natureza – e depois com teste positivo à covid-19 – de pessoas com 90 ou mais anos, e ainda de 502 com idades entre os 80 e 89 anos. A média foi de quase 78 anos, e mais de metade dos hospitalizados nestas circunstâncias tinha idade superior a 81 anos.
O idoso mais velho hospitalizado nestas condições foi uma senhora de 103 anos, bastante debilitada (já com caquexia) e com deficiência renal, que caiu da cama em Novembro de 2020, com perda de consciência. Internada no Hospital Pedro Hispano, em Matosinhos, acabou por morrer ao quinto dia. Foi considerada mais uma morte por covid-19.
No entanto, também houve crianças, adolescentes e jovens adultos internados por quedas que surgem como doentes-covid. O mais jovem foi um bebé de dois anos do sexo masculino. Esteve internado no Centro Hospitalar Universitário de Lisboa Norte apenas dois dias em Setembro de 2020, em observação, por ter perdido a consciência após a queda. Foi assim metido nas contas oficiais dos internados por covid-19 porque registou positivo no teste de admissão no hospital. Surgem mais cinco menores de idade em similar circunstância, com internamentos muito curtos (quase sempre apenas um dia), ou seja, a covid-19 não os afectou.
A gravidade de algumas destas quedas e outras contusões, sobretudo dos mais idosos, mostra-se notória quer na taxa de mortalidade quer nos efeitos das quedas (traumatismos). De entre os 178 traumatizados (e depois com covid-19) com 90 ou mais anos, 65 morreram. Destes, 14 em menos de uma semana. Em todas as idades, 62 faleceram no período de uma semana, sendo que cinco morreram no próprio dia do internamento e 15 no dia imediatamente posterior.
Observando o efeito directo de muitas das quedas – ou seja, os traumatismos resultantes –fica-se com a verdadeira percepção da sua gravidade, e da irrelevância da covid-19 no desfecho fatal.
De entre os internados após estes acidentes que morreram nos primeiros dias de internamento, contam-se traumatismos crânio-encefálicos, hemorragias subdurais, fracturas da base do crânio, compressão do encéfalo, edemas cerebrais, etc.. Isto apenas se se considerar a cabeça. Se se incluírem também as fracturas e danos nos membros superiores e inferiores, ou fracturas ou contusões em outras partes do corpo, ainda mais em pessoas fragilizadas, então pode-se deduzir que a covid-19 – embora bastante letal em idosos – arcou com muitas mais culpas do que aquelas que, efectivamente, teve.
Além destes cerca de 1.200 casos, o PÁGINA UM detectou na base de dados do SNS mais 719 doentes-covid que registaram quedas, mas a esmagadora maioria terá já ocorrido em meio hospitalar, tendo em consideração a ordem do registo clínico individual. Em alguns casos, essas quedas – muitas das quais da cama – podem ter contribuído para um desfecho fatal, mas apenas uma investigação clínica, ou judicial, daria uma resposta. Algo que o PÁGINA UM, neste aspecto concreto, não consegue fazer.
Óbitos atribuídos à covid-19 de pessoas internadas no próprio dia da morte após quedas e outros acidentes similares
Homem, 91 anos
Data de internamento: 28/11/2020
Causa do internamento: queda resultando em traumatismo crânio-encefálico com hematoma subdural e lesão focal.
Unidade de saúde: Centro Hospitalar Universitário de Coimbra
Homem, 87 anos
Data de internamento: 15/01/2021
Causa do internamento: queda resultando em traumatismo intracraniano de doente diabético.
Unidade de saúde: Hospital Professor Doutor Fernando Fonseca (Amadora-Sintra)
Mulher, 84 anos
Data de internamento: 27/01/2021
Causa do internamento: queda de doente acamado com doença de Alzheimer.
Unidade de saúde: Centro Hospitalar de Setúbal
Mulher, 65 anos
Data de internamento: 24/11/2020
Causa do internamento: queda resultando em traumatismo crânio-encefálico hemorrágico.
Unidade de saúde: Centro Hospitalar Universitário de São João (Porto)
Homem, 60 anos
Data de internamento: 27/01/2021
Causa de internamento: queda de janela do hospital (suicídio?) de doente terminal com tumor de pâncreas e fígado, apresentando covid-19.
Unidade de saúde: conhecida, mas não revelada
Óbitos atribuídos à covid-19 de pessoas internadas após quedas e outros acidentes similares e que morreram no dia seguinte
Mulher, 99 anos
Data de internamento: 17/06/2020
Causa de internamento: queda de cadeira de rodas resultando laceração periocular e coma subsequente.
Unidade de saúde: Centro Hospitalar Universitário de Lisboa Norte
Homem, 97 anos
Data de internamento: 01/11/2020
Causa de internamento: queda resultando em traumatismo crânio-encefálico com hemorragia subdural.
Unidade de saúde: Centro Hospitalar Tâmega e Sousa
Mulher, 97 anos
Data de internamento: 23/01/2021
Causa de internamento: queda resultando em traumatismo crânio-encefálico com hemorragia subdural
Unidade de saúde: Centro Hospitalar Tâmega e Sousa
Mulher, 89 anos
Data de internamento: 05/02/2021
Causa do internamento: queda resultando em traumatismo crânio-encefálico com hemorragia subdural e hemiplegia afectando o lado esquerdo do doente.
Unidade de saúde: Centro Hospitalar Universitário de Coimbra
Mulher, 87 anos
Data de internamento: 29/01/2021
Causa de internamento: queda resultando em traumatismo intracraniano e perda de consciência de doente crónico renal, que vivia em lar de idosos
Unidade de saúde: Centro Hospitalar Barreiro-Montijo
Homem, 87 anos
Data de internamento: 03/04/2020
Causa de internamento: queda de doente em lar de idosos com cancro da bexiga, diabetes.
Unidade de saúde: Centro Hospitalar Universitário de Coimbra
Homem, 86 anos
Data de internamento: 30/12/2020
Causa do internamento: queda resultando em fractura do fémur esquerdo de doente com demência e estenose da válvula aórtica, que vivia em lar de idosos.
Unidade de saúde: Centro Hospitalar Lisboa Ocidental
Mulher, 85 anos
Data de internamento: 12/12/2020
Causa de internamento: queda resultando numa contusão não especificada da cabeça.
Unidade de saúde: Centro Hospitalar de Trás-os-Montes e Alto Douro
Homem, 85 anos
Data de internamento: 18/01/2021
Causa de internamento: queda resultando em traumatismo intracraniano em doente com grave desidratação.
Unidade de saúde: Unidade Local de Saúde do Norte Alentejano
Homem, 84 anos
Data de internamento: 28/10/2020
Causa de internamento: queda resultando em fractura do fémur direito de doente com doença pulmonar obstrutiva crónica (DPOC), cancro do pulmão e dependência de oxigénio suplementar.
Unidade de saúde: Centro Hospitalar do Oeste
Mulher, 78 anos
Data de internamento: 17/01/2021
Causa de internamento: queda resultando em traumatismo crânio-encefálico com hemorragia subdural e coma de doente com diabetes e antigo enfarte do miocárdio.
Unidade de saúde: Centro Hospitalar Universitário de Coimbra
Homem, 77 anos
Data de internamento: 06/01/2021
Causa do internamento: queda envolvendo doente com rabdomiólise e hipopotassemia.
Unidade de saúde: Centro Hospitalar Universitário de Coimbra
Mulher, 75 anos
Data de internamento: 25/01/2021
Causa de internamento: queda resultando em fractura do colo do fémur de uma doente com obesidade mórbida e insuficiência cardíaca que sofreu ataque cardíaco.
Unidade de saúde: Hospital Professor Doutor Fernando Fonseca (Amadora-Sintra)
Homem, 70 anos
Data de internamento: 16/11/2020
Causa de internamento: queda resultando em traumatismo crânio-encefálico com hemorragia subdural, compressão do encéfalo, edema cerebral e coma em doente com diabetes e estenose aórtica.
Unidade de saúde: Hospital de Braga
Homem, 67 anos
Data de internamento: 17/01/2021
Causa de internamento: queda resultando fractura da base do crânio e em hemorragia epidural, e ainda fractura das costelas.
Unidade de saúde: Centro Hospitalar Universitário de Coimbra