No país em que a avaliação de impacto ambiental é encarada como uma chatice, ainda por cima, cara, que deve ser ultrapassada por forma a chegar ao licenciamento final;
No país em que todos os esquemas são usados para fazer aprovar um projecto;
No país em que há uma completa desconsideração pelo território, pelas suas características e pelas populações que nele habitam;
No país em que temos vastas áreas de território ao puro abandono pelas autoridades que dele deviam cuidar, à mercê de todas aqueles que o querem explorar sem piedade, desconsiderando o passivo ambiental que deixam pelo caminho um passivo ambiental do qual ninguém quer saber;
No país em que se abatem milhares de árvores em prol da descarbonização;
No país em que se destrói o montado de sobro em prol da descarbonização;
No país em que o património agrícola mundial está em vias de ser destruído às mãos da extração do lítio;
No país em que se limpam ribeiras com glifosato e se acha que limpar uma linha de água é o mesmo que limpar o quintal lá de casa;
No país em que se assiste a uma completa destruição do solo com vastas zonas de onde é arrancado todo o coberto vegetal, seja para plantação de novas culturas como o abacate, seja para “plantação” de painéis solares;
No país em que se espalha a ideia de que a seca é combatida pela construção de uma dessalinizadora;
É, pois, neste país, em Portugal, que uma legislação, actualmente em consulta pública, sobre simplificação de licenças e procedimentos para empresas na área ambiental deve estar a provocar a abertura de garrafas de champanhe.
Afinal, a ser aprovada esta nova lei, já não será necessário torcer diplomas, produzir estudos de impacte ambiental que são atentados à inteligência, usar favorecimento pessoal, e principalmente, nessa medida, o “progresso” já terá uma via rápida, sem constrangimentos ambientais.
Só a título de exemplo – e mesmo só a título de exemplo, já que as canalhices se multiplicam ao longo do diploma –, vejamos algumas das maravilhosas inovações que este diploma oferece aos investidores.
Antes de mais, o próprio projecto de diploma é ambicioso, e não esconde ao que vem. A dada altura pode ler-se: “Serão futuramente adotadas novas iniciativas legislativas com o mesmo propósito de simplificação e redução dos encargos administrativos para as empresas também noutras áreas, incluindo, em especial, o urbanismo, ordenamento do território, indústria, comércio e serviços e agricultura.”
E continua, vincando bem os casos de em que deixa de ser necessário avaliação de impacto ambiental (AI). Este, aliás, aparenta ser o principal objectivo.
Querem instalar 100 hectares de painéis solares? Não há necessidade de AIA.
Projectos de loteamento? Deixa de ser necessário AIA.
Querem transportar energia eléctrica até 15 Km e 110 KV? Não há necessidade de AIA.
Se determinadas situações já foram analisadas em sede de AIA, já não haverá necessidade de avaliação pelas entidades competentes. Por exemplo, projectos localizados em área de Reserva Ecológica Nacional (REN), já não serão analisados pelas respectivas comissões de coordenação regional (CCDR’s). Projectos de utilização não agrícola de terrenos agrícolas, já não serão objecto de parecer da comissão da Reserva Agrícola Nacional (RAN). O abate de sobreiros e azinheiras já não necessitarão de pareceres prévios e vinculativos por parte do Instituto Nacional de Conservação da Natureza e Florestas (ICNF).
Também há caminho escancarado para a aprovação tácita – ou seja, aprovação por mero decurso do tempo, sem que a autoridade de AIA tenha ponderado sobre o projecto. Uma vergonha, e tenho para mim que esta será a nova moda em termos a aprovação de projectos de avaliação de impacto ambiental.
E pronto. Está aberto o espaço para a completa desagregação do território, sendo que a técnica é, como em outras ocasiões, tornar legal aquilo que antes era ilegal.
Mas porquê que este diploma é totalmente ilegal?
A actual legislação sobre avaliação de impacto ambiental é produto de uma transposição de Directivas europeias, que têm vindo a ser sujeitas a actualizações, mas sempre no contexto de legislação europeia.
Ora, perante isto, a mera circunstância de vir um decreto-lei do Governo, que não constitui transposição de coisa nenhuma e que só visa alterar (no sentido de facilitar) legislação comunitária, é desde logo ilegal atento o primado do direito europeu sobre o direito nacional.
Não estou com isto a dizer que, ao nível interno, não possam existir alterações àquilo que está definido em termos de critérios para avaliação de impacto ambiental. O que estou a dizer é que, essas alterações devem fazer-se sempre dentro do espírito da lei europeia e nunca para contorná-la.
Conforme dito no Acórdão do Tribunal de Justiça (Quinta Secção), de 21 de Março de 2013, Salzburger Flughafen GmbH contra Umweltsenat, a margem de apreciação de que dispõem os Estados Membros, quanto “à fixação dos limiares ou critérios para determinar se um projecto destes deve ser sujeito a uma avaliação de impacto ambiental (…) tem os seus limites na obrigação (… ) e submeter a um estudo do impacte ambiental os projectos susceptíveis de ter efeitos significativos no ambiente, nomeadamente pela sua natureza, dimensões ou localização”. Estas três dimensões, não sendo excludentes de outras são inafastáveis.
Já num outro Acórdão do Tribunal de Justiça das Comunidades Europeias, relativo à Irlanda, diz-se que um “Estado membro que fixe os critérios e/ ou os limiares só tendo em conta as dimensões dos projectos, sem tomar em consideração igualmente a natureza e a sua localização, excede a margem de apreciação de que dispõe.
Recorro a decisões do Tribunal de Justiça porque o direito comunitário vai sendo interpretado a partir dessas decisões, sendo uma fonte segura, inclusivamente, para sabermos para onde podem ir algumas das alterações legislativas.
O Tribunal de Justiça das Comunidades Europeias tem vindo a decidir de forma consistente que um projecto, mesmo de dimensões reduzidas, pode ter efeitos significativos no ambiente quando for situado num local em que os factores ambientais – tais como a fauna e a flora, o solo, o clima ou o património cultural – sejam sensíveis à mínima modificação.
E ainda mais importante, os limiares ou critérios fixados pelos Estados “têm o objetivo de facilitar a apreciação das características concretas de um projecto, para determinar se o mesmo está sujeito à obrigação de avaliação, e não o de subtrair de antemão a essa obrigação.”
É fácil perceber onde está o espírito da legislação ambiental e em que sentido vão as decisões judiciais… na Europa.
Vamos agora viajar de regresso ao nosso processo legislativo, àquilo que está em causa com esta “simplificação de licenças e procedimentos para as empresas na área ambiental”.
Não tenho dúvida de que o diploma será aprovado. Seguindo o curso legislativo normal, terá de ser ratificado pelo Presidente da República, que pode enviar o diploma para apreciação do Tribunal Constitucional. Marcelo não o fará, porque não quer conflito com o Governo e não quer ficar associado a nada que possa “emperrar” a aplicação dos fundos do PRR.
Mais uma vez cabe-nos, a nós, a oposição a este tipo de legislação. Legislação que em si mesma é ilegal. Uma das formas de o fazer é participar na consulta pública, e fazer saber a nossa total oposição a esta nova legislação, a partir DAQUI, até dia 16 de Setembro.
Rui Amores é advogado.
N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.