Esta madrugada, eram cinco horas e eu ainda estava a escrever, mas não era nenhuma notícia. Deveria ser, mas não era.
Estava a escrever “argumentos jurídicos”, para “auxiliar” o advogado do PÁGINA UM, Rui Amores, a contra-alegar no Tribunal Administrativo em dois dos processos de intimação que interpusemos para acesso a documentos administrativos.
São já 12, como será do conhecimento público, todos devido à falta de transparência de entidades públicas. Talvez sejam mais em breve, incluindo contra a Comissão da Carteira Profissional de Jornalista (CCPJ), cujo Secretariado veio, na semana passado, recusar-me o acesso a informações, em alguns casos relacionados com notícias que escrevi, alegando que, além de “constitu[ír]em documentos nominativos, sujeitos à proteção de dados pessoais”, eu não tenho “um interesse direto, pessoal, legítimo e constitucionalmente protegido suficientemente relevante”.
Já estamos na fase em que jornalistas da CCPJ defendem e promovem a tese de que os jornalistas, pela sua condição, não têm interesse em matérias que investigam. E que, basicamente, não devem chatear.
Não nos surpreendamos: o próprio Conselho Superior da Magistratura (CSM) já defende essa linha (não por acaso, é vê-la agora em estreita colaboração com a CCPJ). E mesmo tendo o CSM perdido um processo de intimação em primeira instância no Tribunal Administrativo de Lisboa, recorreu, pelo que o acesso continua ainda impossível.
Mas vejam então como dediquei esta noite “jurídica”, que só há pouco terminou com a escrita deste Editorial.
O primeiro processo, no qual estive a “alegar”, é recente – começou no mês passado. Tem como ré a Entidade Reguladora para a Comunicação Social (ERC) – que, aliás, tem estado a criar regulamentos internos ad hominem (voltarei ao tema!) – e deve-se à recusa no acesso aos pedidos de confidencialidade de empresas de media para que fiquem secretos determinados fluxos financeiros. A transparência é a regra, mas há uns “amigos” que podem ser excluídos dessa obrigação. A ERC quer decidir… secretamente.
O segundo processo é mais antigo (iniciou-se em finais de Maio), e refere-se à recusa das Ordens dos Médicos e dos Farmacêuticos em ceder documentos operacionais e contabilísticos da campanha Todos Por Quem Cuida, que envolveu 1,4 milhões de euros, e o apoio financeiro da indústria farmacêutica. Embora considerado urgente, esta intimação já caminha para o quarto mês, tendo já 46 registos (movimentos) processuais. Tem sido interessante ver como as duas Ordens, mais as respectivas sociedades de advogados, lutam abnegadamente para não cederem os documentos requeridos para se avaliar como ganharam e como gastaram o dinheiro dos donativos.
Enfim, nos últimos tempos, uma parte dos meus dias de trabalho no PÁGINA UM não se mostra visível, sob a forma de notícias; são estas “burocracias”, as pequenas “batalhas” em prol da transparência, do acesso a documentos, apresentando requerimentos, reiterando pedidos de informação, compondo queixas. É desgastante, mas necessário. Os leitores não vêem este trabalho de formiga – e, por vezes, sinto que o menor fluxo de notícias, patente nas últimas semanas, pode influenciar a avaliação que se faz ao PÁGINA UM.
Mas sempre assumi que o PÁGINA UM, além de um projecto de jornalismo independente, seria um projecto de cidadania. O leitmotiv do PÁGINA UM é a Democracia, a defesa dos princípios democráticos, assumindo que a Imprensa é um dos instrumentos.
Nesta linha, os processos em Tribunal Administrativo – perante o inculcado e bem enraizado obscurantismo da Administração Pública – estão a servir também de teste à Democracia; servem para perceber se ainda existe uma entidade externa ao Poder, e às decisões arbitrárias deste em recusar o acesso à informação por parte dos cidadãos, que defenda a Democracia.
Sinto, por isso, cada um dos processos de intimação no Tribunal Administrativo como um teste à vitalidade da Democracia portuguesa.
Uma vitória – e tivemos duas embora ainda sem efeitos práticos, porque o Conselho Superior da Magistratura e a Ordem dos Médicos (um outro processos, sobre pareceres técnicos) recorreram – é sempre uma esperança.
Mas mesmo quando também há uma derrota, paradoxalmente, nasce uma esperança – mas por outros motivos.
Por exemplo, esta madrugada, no meio da consulta da plataforma dos meus processos, constatei que tive uma derrota. Foi ontem concluída a sentença da intimação para o Ministério da Saúde abrir o seu arquivo – para conhecer a gestão durante os anos da pandemia.
Ora, tendo eu pedido acesso integral do arquivo do Ministério da Saúde desde 2020, identificando as entidades a quem se dirigiam e recebiam ofícios e relatórios, a juíza entendeu, mesmo assim, que “atendendo à forma como o pedido foi formulado, a Entidade Requerida [Ministério da Saúde] não consegue satisfazer a pretensão, por não ser possível identificar, em concreto, a que documentos e informações o Requerente [eu] pretende o acesso, nem mesmo para perceber se estão em causa dados pessoais ou nominativos.”
E acrescenta, dando na ferradura, que “importa salientar que não se trata de negar o acesso aos arquivos e registos administrativos, que conforme acima se expôs, constitui um direito fundamental de natureza análoga aos direitos, liberdades e garantias, todavia, impõe-se aos requerentes dessa informação que concretizem o que pretendem, caso contrário, a entidade administrativa não consegue satisfazer o pedido.”
Esta decisão é surpreendente, porque a Lei do Acesso aos Documentos Administrativos diz taxativamente que “se o pedido não for suficientemente preciso, a entidade requerida deve, no prazo de cinco dias a partir da data da sua receção, indicar ao requerente a deficiência e convidá-lo a supri-la em prazo fixado para o efeito, devendo procurar assisti-lo na sua formulação, ao fornecer designadamente informações sobre a utilização dos seus arquivos e registos.” Algo que o Ministério da Saúde nunca fez nem propôs. Aliás, o Ministério classificou logo o pedido do PÁGINA UM de “manifestamente abusivo“.
Mas, mesmo assim, a juíza achou que como não consegui identificar em concreto os documentos – talvez o número dos ofícios ou o título de relatórios, que só poderia saber se fosse adivinho –, mesmo se identifiquei as entidades envolvidas e o intervalo de datas, “não se impõe à Entidade Requerida que entregue ao Requerente a informação e documentos requeridos.”
E, pronto, improcedente, e pague-se as custas… Ou recorra-se para o tribunal superior, com mais custas, que é aquilo que se fará enquanto houver dinheiro do FUNDO JURÍDICO. E esperança…
E, então, perguntam os leitores: onde está afinal a esperança nesta derrota?
Está em poder contribuir para muitos acordarem do torpor (quase) colectivo que deixou a nossa Democracia apodrecer.
Embora com meios incomensuravelmente menores do que as entidades públicas, o PÁGINA UM não vergará facilmente na sua luta em prol da transparência e do acesso à informação. No caso dos processos judiciais, que podem envolver custos acrescidos em caso de derrota, os apoios podem ser concedidos ao FUNDO JURÍDICO. Para o apoio ao trabalho jornalístico, podem apoiar através de várias modalidades.