Recordo como se fosse hoje a esquiva e as desculpas para não operar os doentes. Recordo as crises emocionais de alguns a quem calhou a sorte de um HIV positivo.
Tenho a memória de operar em PECLEC (sistema de redução de lista de espera) nos anos 2005 e seguintes, no Hospital de Anadia, doentes de Portugal inteiro que se arrastavam nas suas instituições onde despudorada e desavergonhadamente lhes recusaram assistência.
A SIDA teve uns artistas televisivos, uns médicos que se prestaram ao discurso de um certo Cavaquismo (governava o PSD com maioria absoluta) e a um ministro Arlindo de Carvalho que distribuiu milhões de escudos que chegavam da Europa para associações e instituições onde se acumulavam amigos e companheiros.
Antes eram escudos, os euros vieram em 2002.
De 1987 (começavam a morrer vedetas da música, cabeleireiros, gente associada ao mundo gay) até 2004, quando irrompem os retrovirais dando confiança, a falta de respeito e a perfídia reinava em português.
– São paneleiros!, diziam com desprezo.
Falo de gente directora de serviço, de gente directora de hospitais, de enfermeiros-chefes. Eu vi. Eu testemunhei, surpreso e contundido.
Sim, meus amigos, essa geração reagiu ao medo de um modo descompensado e deselegante.
Organizei, com o Cesário Andrade Silva e o Luís Taborda, e com subsídio atribuído pelo ministro Couto dos Santos, e depois pelo secretário de Estado Martins Nunes, o “SIDA anos 90”. Foi o primeiro congresso internacional sobre SIDA que se fez na Europa.
Tivemos as vedetas da TV, a Laura Aires e a Odete Santos Ferreira – já falecidas e que, na altura, desempenhavam o papel do Froes e do Carlos Antunes de agora, os proprietários das Associações criadas para receber os fundos europeus, os amigos do Estado. Tivemos imposições para alguns estarem nas mesas, nomes do nepotismo nacional, rolhas que sempre sobrenadam.
Pontificava, no mundo, um português de sua graça Luís Champalimaud, que tinha identificado e isolado o HIV2 na Guiné. Esse colega não ia à televisão, não era membro das comissões de luta contra a SIDA, não tinha voz activa nas decisões do Estado. Não tinha palco! Era o patinho Torgal daquela altura.
Nós éramos a Associação Nacional de Jovens Médicos, fundada pelo Álvaro Beleza, e que eu prosseguiria com a missão.
Tivemos outros médicos, que hoje são vedetas políticas, como Miguel Guimarães, Manuel Pizarro, Miguel Leão, mas não incentivaram a ANJM, e não estiveram de alma no Congresso da SIDA anos 90.
As principais conclusões, e outros textos sobre a temática, foram publicadas na revista da Ordem dos Médicos em Junho de 1990.
A SIDA foi uma escola para aquilo que hoje estamos a viver. Foi uma lição onde os comportamentos humanos mais impróprios ganharam luz, mas, como não era um vírus transmitido pelo ar, a histeria não cresceu mais.
Havia os que recusavam os pratos nos restaurantes, os que temiam um beijo, os que recusaram proximidade com doentes da SIDA ou mesmo os seus cuidadores.
O HIV matava jovens que se fartava – nada comparado com o SARS-CoV-2. Morriam de modo lento, com infecções sucessivas, em angústia e agonia.
Recordo o filme Filadélfia, em 1993, com Tom Hanks e Denzel Washington, e uma banda sonora maravilhosa. Vejam, e perceberão o que se passa no Mundo agora.
Eu vi! Eu estive lá!
Diogo Cabrita é médico
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