Já se sabia, mas fica assim preto no branco: a CNN Portugal interrompeu, na madrugada do dia 24 de Fevereiro, o enviado especial a Kiev, Filipe Caetano – seu editor de negócios estrangeiros e então membro do Conselho Deontológico do Sindicato dos Jornalistas –, para transmitir imagens falsas. A Entidade Reguladora para a Comunicação Social provou tudo e quis inicialmente obrigar o canal da Media Capital a pedir desculpa. Mas acabou por ser mais benevolente: a CNN Portugal só levou uma recomendação. Pede desculpa se quiser. Até agora, não quis.
Confirma-se. Agora é mesmo oficial. A CNN Portugal utilizou, na madrugada do passado dia 24 de Fevereiro, imagens falsas, retiradas de um jogo de computador, com “mísseis a rasgar o céu” à noite, fazendo crer aos telespectadores que se tratavam dos primeiros momentos dos ataques da Rússia à Ucrânia.
O pivot da emissão, o jornalista Cláudio Carvalho, na emissão da madrugada (4:10 horas) corroborara então a “veracidade” (agora falsa) das ditas: “E são imagens, de facto, impressionantes, do início desta invasão, ou deste ataque – utilizando uma expressão que está a ser usada pela Casa Branca –, este ataque por parte das forças russas ao território ucraniano. Vincando ser “possível ver e ouvir” os mísseis. Afinal, eram simplesmente imagens manipuladas do jogo War Thunder,
Esta é a conclusão da Entidade Reguladora para a Comunicação Social (ERC), através de uma deliberação aprovada em 7 de Setembro, mas só ontem revelada no site daquela entidade. A ERC fala taxativamente de se estar perante “uma violação grosseira [por parte da CNN Portugal] do dever de assegurar o rigor informativo”. Contudo, após uma audiência prévia concedida ao canal, decidiu não obrigar a CNN Portugal a confessar que fez desinformação junto dos seus leitores.
Mas o canal televisivo leva apenas um “puxão de orelhas” da ERC, mas leve: uma recomendação para “assumir o seu erro cometido perante o seu público”. Ou seja, não é obrigado a fazer nada.
Em todo o caso, a CNN Portugal não se livra da censura por parte do regulador. A deliberação da ERC é, nesse aspecto, taxativa: o canal veiculou conteúdos passíveis de serem classificadas de fake news, algo que, aliás, já se sabia através de uma análise no próprio dia de início das hostilidades, através do fact checker Full Fact.
Embora faça apenas uma recomendação para que a CNN Portugal assuma “o seu erro perante o seu público”, a ERC lança na sua deliberação vários recados muito comprometedores para a chamada imprensa mainstream: “é essencial que, no ambiente atual em que prolifera a desinformação, os media noticiosos ditos tradicionais garantam uma informação rigorosa e pugnem por alcançar a máxima credibilidade junto do público”. A deliberação salienta ainda que a imprensa tradicional deve “posicionar-se como portos seguros onde se encontra informação de qualidade.”
Curiosamente, o então enviado especial da CNN Portugal à Ucrânia – e que foi mesmo interrompido pelo pivot para serem emitidas as imagens falsas – era o jornalista Filipe Caetano, editor de negócios estrangeiros do canal. Caetano era, à data, membro do Conselho Deontológico do Sindicato dos Jornalistas. Esta entidade não se debruçou sobre esta matéria.
A leitura desta deliberação da ERC permite também conhecer as diversas tentativas da CNN Portugal em desvalorizar a colocação de imagens completamente falsas em antena.
No processo, o regulador revela que enviou ao canal um projecto de decisão em finais de Maio passado, tendo o canal televisivo da Media Capital reconhecido que o “vídeo em questão não [era] real”, mas considerando que o “vídeo não é em si a notícia, sendo antes um elemento visual de corroboração das demais fontes disponíveis”. E assumia que, enfim, a “exibição de vídeo não distorceu o retrato da realidade factual, uma vez que efectivamente a Ucrânia tinha sido invadida”.
Mais curiosa ainda se mostra a argumentação do canal televisivo de se ter usado uma “fonte incorrecta para corroborar informação correcta”. A CNN Portugal diz mesmo que as imagens de computador exibidas têm “uma semelhança evidente com imagens reais” sobre “o funcionamento do sistema de defesa antiaéreo ucraniano”.
E perante a sugestão do projecto de decisão da ERC de ser obrigatório a assumpção pública da emissão de imagens falsas, a CNN Portugal manifestou que isso seria “excessivamente contundente” e que até poderia “inclusivamente ser contraproducente para os fins que lhe parecem estar subjacentes – o reforço da confiança nos media tradicionais”. Ou seja, a CNN Portugal achou que seria melhor não assumir um erro para assim escapar ao juízo dos telespectadores.
No âmbito da audiência prévia, em 27 de Julho passado também foi ouvido o director executivo da CNN Portugal, Frederico Roque de Pinho, que acabou por revelar a fonte das imagens falsas: a NEXTA, por ele classificada como “uma televisão digital” e “uma fonte independente com sede na Polónia”. Contudo, na verdade, a NEXTA é um canal de um exilado bielorusso que usa apenas as redes sociais para difundir informações, como o YouTube, Telegram, Instagram e VKontakte (o “Facebook russo”).
Nesse aspecto, a própria ERC aceitou a tese de que “não foi a CNN Portugal que retirou o vídeo das redes sociais ou de plataformas de partilhas de vídeos”; foi sim a NEXTA que o facultou. Aqui o regulador aparenta não ter aprofundado o método de trabalho daquele canal bielorusso.
Com efeito, a NEXTA somente divulga informação via redes sociais, pelo que, a existir cedência, esta é feita de forma passiva, tendo os utilizadores que descarregar os vídeos. O PÁGINA UM conferiu os quatro vídeos deste canal com data de 24 de Fevereiro e, apesar de um deles possuir imagens nocturnas supostamente de mísseis, nenhum integra as imagens transmitidas pela CNN Portugal.
Por outro lado, não existem dúvidas de que o vídeo transmitido pela CNN Portugal na madrugada de 24 de Fevereiro é exactamente igual, incluindo o som, àquele colocado na plataforma do Youtube em 15 de Dezembro do ano passado, portanto, antes da invasão da Ucrânia.
Aliás, sobre a não referência à NEXTA aquando da emissão das imagens, Roque de Pinho deu, em sede de audiência prévia, uma explicação muito sui generis: “Nós consideramos que ali, de facto, desinformação não existe. Existe um conteúdo vídeo de facto errado. Na CNN há uma regra que denota maior credibilidade, até em relação à concorrência, que nós regra geral temos também no ecrã a fonte, ou seja, a origem das imagens, e neste caso, salvo erro, não estava lá, e é a NEXTA. Portanto há aqui esse lapso.”
Sobre a possibilidade de um mea culpa, Roque de Pinho remeteu apenas a possibilidade de abordar a questão do programa “Fontes bem informadas”, aos sábados naquele canal, mas nem isso ainda foi feito. E nem vai precisar, tendo em conta que a ERC decidiu alterar o projecto de deliberação inicial – uma decisão individualizada vinculativa –, porquanto a CNN Portugal reconheceu, durante a instrução do procedimento administrativo, o erro e mostrou, segundo a ERC, “abertura, lisura e transparência”.