VISTO DE FORA

Alerta para mim próprio: nunca fazer balanços

person holding camera lens

por Tiago Franco // Outubro 31, 2022


Categoria: Opinião

minuto/s restantes


Não sou grande coisa em balanços. Desde logo porque me falta paciência, ou maturidade, mas, essencialmente, porque raramente consigo estar em silêncio comigo próprio para pensar no que foi feito e no que falta fazer.

Se vos vir no LinkedIn, malta da ioga e da meditação, vou largar uns quantos #kudos. Entrar naquele buraco no fundo da mente, carregado de silêncio e paz interior, é para mim o equivalente a encontrar o fim do arco-íris.

man standing on metal railing overlooking beach shoreline under gray cloudy skies at daytime

Como dormir também é arte que não domino, escolho transpirar: uma, duas, três ou quatro horas por dia. É o mais próximo que consigo ter de pensamentos interiores.

Entro no campo antes das oito da manhã. Tenho sono, o café ainda não deu aquele chuto do costume e começo a pensar se devia continuar a comprar Starbucks. Entretanto, a bola começa a saltar.

O meu parceiro, alguém que conheci há três minutos, diz-me que jogava ténis e que está a tentar adaptar-se ao padel. Ainda não me correu a primeira gota de suor nas costas e já sei que a percentagem de bolas na rede andará nos 65%.

Mas tudo bem. Já larguei o latino que vivia comigo há muito. Agora sou aquele gajo que mete o relógio dos velhos, conta os batimentos cardíacos e fico feliz apenas pelo desporto. A cada bola na rede digo um f***-se interior, e cá para fora repito um “tranquilo, a próxima é melhor”. Minto e sorrio tão bem que podia ser escandinavo.

person holding orange and white polka dot round ball

Aos poucos vou-me desligando do jogo e começo a fazer uma ronda pelos temas da vida. No fundo, o mais parecido que consigo com um balanço.

A minha avó disse-me em Setembro que conduzisse com cuidado no regresso à Suécia porque não queria morrer sem me ver. E desatou a chorar. Ela chora sempre que me vê, há anos que é assim. Mas nunca refere o momento da morte como inevitável, porque, como já escrevi aqui, ela decide quando quer ir. Não são os outros. Durante uma semana não pensei em mais nada e de vez em quando, volta-me este pensamento e o peso na consciência de aqui estar, neste fim de mundo.

Digo-lhe pela quarta vez que não pode estar no meio do campo senão, nem apanha as da rede nem as do vidro. Passo o tempo a correr para apanhar as bolas nas costas dele.

Apesar de tudo, estou contente por ir chegando a cada uma delas. Tenho 45 anos, nada me dói, dou à raquete pelo menos duas horas por dia. Faço o meu balanço médico enquanto o ouço a criticar-se de forma violenta. Digo-lhe que não se preocupe, que não tarda está a atinar com aquilo. Por dentro, continuo latino e fervo por todo o lado.

Ligo a idade com o trabalho. Lembro-me de uma entrevista que fiz numa empresa de telecomunicações, aos 23 anos, onde a entrevistadora me disse que tinha concorrência de miúdos de 21, e acrescentou: “o que andou a fazer da vida, sr. Tiago?”. Era um velho de 23 anos em Lisboa. Hoje, sou ainda mais velho e todas as semanas faço entrevistas de trabalho, todas as semanas me são apresentadas novas hipóteses.

Bem sei que são realidades diferentes (necessidades da indústria sueca vs. portuguesa) e qualquer pessoa da minha área arranja emprego aqui, a dormir, mas, mesmo assim, sabe bem não ser excluído do direito a trabalhar pela idade.

O gajo faz uma jogada extraordinária e pede desculpa à dupla que enfrentamos quando, aqui para nós, devia dirigir as desculpas a mim, pelos 60 minutos anteriores. Volto a sorrir, agora com vontade. E ainda lhe meto um “vamos” pelo meio, para ele sentir aquele calor ibérico.

Voltam a voar bolas e eu lembro-me da conversa com o meu filho na tarde anterior. Dizia ele que sentia muita pressão na escola para ter boas notas, por causa de mim, e que ter-me como pai era cool, mas que seria muito difícil ter ainda mais sucesso.

green tennis balls on tennis court

O meu filho, cuja geração mede o sucesso pela aquisição de um Tesla ou qualquer coisa decidida por um tik-toker, acha que sair do país, ficar longe de amigos e família, a troco de uma vida que se espera melhor, é uma história de sucesso. Tentei explicar-lhe que somos cerca de cinco milhões de pessoas de “sucesso”, só de origem portuguesa (fora os demais deslocados), e muitos, onde me incluo, só procuravam uma vida boa no local de nascimento.

Em vez disso, acabamos por passar boa parte da vida, em sofrimento, e até solidão, para proporcionar algo melhor à família, que, entretanto, criamos. Será facílimo ele ter mais “sucesso”. Bastará que possa escolher ficar e ter uma vida boa no sítio onde criou raízes. Ou, pelo menos, que a razão para sair seja outra que não a busca de uma vida melhor.

Volto a olhar para o relógio e já não me apetece estar ali. Começo a pensar no supermercado. Há 15 dias que não meto lá os pés e hoje é um daqueles dias que tenho de vestir o fato do burro de carga. É isso ou dar vinho do Porto ao puto para jantar.

Agora vejo os preços dos produtos, faço comparações de quilos e litros. Olho para o recibo no fim como se fosse uma carta de amor. Gosto de me indignar, como se a solução dependesse de mim e não como se fosse apenas mais um neste xadrez de pagar e não bufar.

person holding brown leather bifold wallet

Estou farto de fazer contas. Estou mesmo cansado disso. Vim para cá para não ter de fazer contas e, de repente, tenho a Lagarde, o Putin, o Zelensky, o Biden e a von der Leyen a dizerem-me que tenho que voltar a fazer contas.

Desperto da meditação para lhe dizer que se desvie e apanho uma bola no campo dele, quando ele já estava todo esticado para a meter na rede. Quase, quase a terminar o balanço lembro-me do Isaltino, de novo a contas com a justiça por prevaricação e negociatas com uns privados da construção, numa daquelas parcerias público-privadas (PPPs) que não desiludem. Dinheiro público adjudicado diretamente a privados, sem concurso, para várias obras.

Tento uma víbora, mas o gajo do outro lado apanha, e fico com o sorriso do Isaltino na cabeça. Com toda a calma, apanhado pelos jornalistas no meio da rua, dizia a propósito deste caso que era preciso ter tranquilidade, deixar a justiça fazer o seu trabalho e que, obviamente, estava de consciência tranquila.

E tem razão, acrescente-se. Para qualquer um de nós, uma investigação do Ministério Público e a hipótese de irmos parar à prisão seria o fim da vida; para Isaltino é apenas uma terça-feira de trabalho: já tem experiência, sabe a morosidade dos processos, sabe todos os baldes de areia que pode meter na engrenagem. Foi assim antes, quando andou anos a ser investigado e julgado, depois de ter desviado dinheiro, acabando menos de dois anos na Carregueira; e será assim, agora, num crime que começou a ser investigado em 2011. Repito: 2011!

O Isaltino sabe que tem tempo de ganhar mais duas eleições, manter a aura do homem que “rouba mas faz”, reformar-se e, provavelmente, morrer antes de ter que rever os parceiros de sueca na Carregueira.

A bola volta a passar por cima dele, no corredor que devia defender. Estático, rodando a cabeça na minha direcção grita: “é tuuuuua!!!” Eu corro, digo alguns impropérios, estico-me todo para apanhar a bola e ouço um barulho nas costas – parecido com aquele que a minha sola faz à passagem das baratas. Fico esticado no chão, sem me conseguir mexer e com a mão na base das costas.

Levanto-me e caminho dobrado, entre vários ais e a lembrar-me em cada passo da fragilidade do meu corpo de 45 anos. Haverá cliché maior de velhice do que uma raquete esticada no ar seguida de um grito de dor nas costas?

Ainda nem tinha terminado o meu balanço, e já estava errado. Eis porque nunca os faço.

Tiago Franco é engenheiro de desenvolvimento na EcarX (Suécia)


N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

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