Na segunda parte da conversa aberta com o PÁGINA UM, Jorge Amil Dias, presidente do Colégio de Pediatria da Ordem dos Médicos, fala dos avanços que nos permitem dar vida e mais esperança às crianças que nascem com problemas congénitos, mas aborda também os desafios e problemas que se colocam na saúde dos mais jovens. Se é certo que existe uma maior capacidade de detectar doenças crónicas mais cedo (e tratá-la com maior sucesso), Amil Dias relembra os factores ambientais e sociais que estarão a contribuir para haver, no futuro, adultos com comorbilidades mais cedo. E alerta também para as dificuldades no processo de transição dos cuidados médicos pediátricos para o “mundo adulto”. Leia também a primeira parte desta entrevista, aqui, que se debruça sobre o vírus sincicial respiratório.
A mortalidade infantil em Portugal diminuiu de forma muito significativa no último século. Chegou a rondar os 6% no final dos anos 70; agora está nos 0,2%, o que é um valor extremamente baixo, mesmo à escala mundial. Atribui essa evolução favorável às vacinas, ao saneamento básico ou ao papel da Pediatria e contributo dos médicos pediatras?
A resposta não é simples. Com as devidas diferenças, é um pouco como na Fórmula 1. Há 30 anos, um tipo mudava o tipo de pneus, e ganhava dois segundos. Ou mudava a suspensão, ou o que seja, e ganhava mais dois ou três segundos. Hoje, fazem investimentos milionários nos túneis de vento, no deflector, enfim, num pisca qualquer, para ganhar um milésimo de segundo. Há 30 anos, foi-nos fácil modificar o panorama da mortalidade infantil sobretudo porque houve um senhor chamado Torrado da Silva, que foi encarregado pelo Ministério da Saúde de ir pelo país discutir com as várias maternidades dos hospitais onde é que havia condições para as criancinhas nascerem com segurança. E este médico viu que não havia condições em muitos sítios, ora porque as instalações não eram adequadas, ora porque o movimento anual não permitia manter competências. E pelo simples encerramento de maternidades de maior risco, e em coordenação com os outros; pela implementação do programa de vacinação infantil; pela criação da especialidade de Medicina Geral e Familiar, conseguiram-se avanços fantásticos.
Mas a evolução tem um limite…
É claro. Quando a curva começa a espremer, a espremer… O básico e aquilo que garante qualidade de vida à grande maioria das crianças, isso está perfeitamente consolidado. Hoje, para conseguirmos um pequenino avanço temos de seguir técnicas muito mais sofisticadas, porque continuam a nascer crianças de elevado risco – sejam os grandes prematuros, sejam aquelas com doenças metabólicas graves. Para conseguir que estas crianças sobrevivam é preciso investimentos tremendos. Há doenças, nomeadamente as metabólicas, em que se necessita de gastar milhões para ganhar uns anos da vida. Portanto, a resposta à pergunta: é possível melhorar, só que é cada vez mais complexo, mais caro e sofisticado conseguir uns pequeninos avanços.
Nos casos de doenças congénitas ou metabólicas sabemos que, há uns 20 ou 30 anos, as crianças acabavam por morrer ao fim de uns meses ou de poucos anos, mas agora podem ter uma sobrevida muitos anos. Mas envolvendo uma grande complexidade no sistema de saúde e com um custo brutal, não é?
Por exemplo, a fibrose cística era uma doença que matava as crianças no fim da infância ou no início da adolescência. E hoje chegam à idade adulta. E como esta, há uma lista enorme de situações. Portanto, houve de facto um avanço tremendo, mas essencialmente à custa de medidas básicas que influenciaram a grande maioria da população. De facto, neste momento, para conseguir pequeninos avanços, temos de ser muito mais sofisticados.
As mortes por malformações congénitas eram muito frequentes há algumas décadas. Hoje, com os diagnósticos durante a gestação pode-se fazer interrupções da gravidez se se detectarem problemas. Tem ideia de quantas interrupções se fazem por este motivos em cada ano?
Não, não sei. Existem seguramente dados sobre isso, mas não os tenho… É uma questão mais do domínio dos cuidados obstétricos, e eu não faço ideia dos números.
Diz-me muitas vezes que é contra-natura os pais enterrarem os filhos, mas há um século quase todas as famílias tinham de fazer funerais de crianças. Por exemplo, nos anos de 1930, cerca de 40% das mortes em Portugal era de crianças com menos de cinco anos. Agora, ronda 0,25%, mas existe um medo constante em redor das crianças…
As crianças tornaram-se hoje um bem muito mais precioso do que eram há 50 ou 60 anos. Nessa altura, os casais tinham quatro, cinco, seis, oito, nove, dez filhos; sabiam que um, dois ou três se calhar ficavam pelo caminho, mas os outros iam aguentando. Ajudavam na agricultura ou no comércio; enfim, onde os pais trabalhavam. E, portanto, os filhos tinham este peso também de contribuição social; eram um investimento de retorno relativamente rápido. Hoje, os casais têm zero, uma, duas crianças… Quem tem três crianças, tem uma família enorme. E, portanto, nestas novas circunstâncias, as crianças passaram a ser um bem muito mais precioso. E ainda bem que assim é. E, naturalmente, quando se perde a vida de uma destas crianças, isto é uma tragédia enorme para a família e para a sociedade.
Mas nem tudo está bem com as nossas crianças e adolescentes, apesar dos avanços de que já falou…
Temos, de facto, do ponto de vista social, um problema que me preocupa muito mesmo, e já tentei sensibilizar as autoridades, mas não tive muita sorte… Temos cada vez mais crianças com doenças crónicas, seja a obesidade, seja doenças alérgicas, inflamatórias, endócrinas. Temos um aumento da prevalência de várias doenças que conhecíamos na idade adulta e que hoje vão invadindo também a população pediátrica. Isto quer dizer que daqui a 10 ou 20 anos vamos ter um peso significativo de doenças crónicas em adultos jovens.
Como já sucede muito nos Estados Unidos?
Pois. E o tratamento para cada uma destas doenças é cada vez mais caro. Portanto, daqui a 20 anos teremos um peso de adultos jovens com doença crónica. E com custos de saúde significativos. Provavelmente, todos com declarações de deficiência e redução de obrigações fiscais, e por aí adiante. Vamos ter depois, cada vez mais, uma população idosa com morbilidades próprias e a exigir os cuidados de saúde, os quais têm direito pela vida toda em que contribuíram. Aquilo que há muitos anos era a chamada pirâmide etária, neste momento já é uma pirâmide invertida, e ainda por cima com o peso da doença a começar muito mais cedo. E eu não sei muito bem quem é que vai pagar isso tudo.
Esses problemas advêm sobretudo da nutrição?
Tem a ver com várias coisas. Hoje, nós sabemos muito – não sabemos tudo, mas sabemos cada vez mais – sobre factores precoces de risco. Sabemos que a maneira como se nasce, o facto de se ser amamentado ou não, e o tipo de medicamentos que se toma nos primeiros meses de vida, tem uma influência que pode ir a dezenas de anos de distância. E, particularmente, os dois primeiros anos de vida são um período de extrema vulnerabilidade e de risco, que pode condicionar riscos para crianças em idades mais avançadas, e também na vida adulta. E eu acho que não estamos a investir adequadamente nessa área, e isso devia ser devidamente ponderado.
Em que aspectos?
Por um lado, estamos a formar pediatras hospitalares que conhecem doenças complicadíssimas e sabem fazer coisas sofisticadas, e que competem tranquilamente com especialistas de outros países. Mas, pelo menos metade desses pediatras quando acabam a sua formação, dizem: “eu não estou para esta vida hospitalar tão pesada, eu prefiro ir trabalhar na clínica tal e ganhar a minha vidinha sem me chatear tanto“. E o que vão fazer nessa clínica é pediatria básica, pediatria de prevenção de cuidados de saúde, para o quais não receberam formação sólida, que hoje é possível oferecer. Portanto, estamos a formar profissionais desfasados; ou pelo menos uma parte. É evidente que precisamos de intensivistas, de cardiologistas, enfim, de especialistas de ponta e que saibam tratar coisas complexas. Mas precisamos também de ter a noção que uma boa parte destes médicos vão trabalhar em medicina de crianças saudáveis; e que deveriam ter recebido uma formação cuidadosa para, enfim, tentar minimizar tanto quanto possível os factores de risco de doença crónica. E isto não está a ser feito.
O que é preciso fazer?
Era preciso que os dois primeiros anos de vida das crianças fossem particularmente protegidos através de profissionais que tivessem recebido uma formação específica. Os médicos de Medicina Geral e Familiar são profissionais seguramente excelentes, mas que não receberam essa formação. Os pediatras são médicos excelentes e não receberam essa formação. Enfim, são conceitos que todos nós conhecemos das muitas reuniões e do que estudamos. Mas uma coisa é eu ter esta noção em geral; outra coisa é receber uma formação específica sobre isso. Nenhuma criança fica com uma doença inflamatória do intestino ou uma alergia por ter tomado um antibiótico em determinado momento dos primeiros meses de vida; se não tivesse tomado se calhar tinha morrido da doença infecciosa e a situação acabava ali. Mas, sabemos que estatisticamente, determinadas práticas condicionam um risco maior. E, portanto, isto devia obrigar-nos a ser mais cuidadosos e, enfim, ter sempre esta perspectiva global em vista. E ver o que é que se ganha e o que é que se perde. Por exemplo, a prática que houve, durante muitos anos, de um menino ir à urgência, tinha febre, chorava, tinha o ouvido vermelho e saía com antibiótico, se calhar tem de ser revista. Tem de se ser mais parcimonioso.
Deduzo que, na sua opinião, isso se aplique também às vacinas contra a covid-19, onde teria sido mais sensato uma maior ponderação em relação às crianças e jovens. Foi um dos profissionais de saúde que participou num abaixo-assinado a pedir a suspensão da vacinação de crianças, tendo em conta o risco-benefício…
A história da covid-19… Eu julgo que, neste momento, felizmente, o assunto está encerrado.
Eu não sei se está encerrado. Aqui em Portugal, no caso dos adolescentes e crianças, talvez. Mas noutros países vacinam-se crianças com seis meses…
Não queria ser eu a reabrir essa discussão. Todavia, a história da covid-19… Todos nós fomos confrontados bruscamente com uma situação inteiramente nova para a qual ninguém no Mundo estava preparado. Quer dizer, havia alguns teóricos que tinham imaginado que um dia haveria uma pandemia não-sei-do-quê, mas em termos práticos ninguém estava, e os serviços não estavam, preparados para isto. E, portanto, houve um pânico inicial, e justificável, porque morreu muita gente; mas depois foi uma espécie de formação em exercício. E a situação que nós temos hoje, felizmente, é de as variantes em circulação terem uma alta difusão mas uma letalidade relativamente baixa, embora de maior risco em determinados grupos etários ou com outras doenças. E, exactamente pela mesma razão que se recomenda a vacinação contra o pneumococo ou contra a gripe a determinados grupos etários, para a covid-19 a lógica é a mesma.
Portanto…
Em relação à vacinação da população infantil, houve algum pânico; houve a ideia de que vacinando as crianças se prevenia porque se acreditava que as crianças eram o reservatório da doença, e assim não iriam contagiar ninguém. Aquilo que se veio a verificar, com documentação, é que, de facto, as vacinas não foram testadas para a prevenção da difusão. Isto é, poderiam ter alguma eficácia em evitar que o próprio ficasse doente, mas não impediam que ele passasse a doença aos outros. E, portanto, surgiu o argumento de que vacinando as crianças – por serem responsáveis pela difusão da doença – se controlava a difusão… Agora dizem: “bom, de facto, quer dizer, isto não foi testado“. Neste momento, a lógica das vacinas é a de proteger o próprio. Eu tomo a vacina contra a cólera para não apanhar cólera, se for a um país onde a cólera existe. Esta é a lógica global das vacinas, com pequeninas excepções, como sucede com a da rubéola, por exemplo. Ora, se a doença nas crianças não era um problema grave, então qual era a lógica de as vacinar? “Ah, é para não contagiar“, diziam. Mas, então, afinal o que se viu é que a vacina não impedia o contágio. É preciso que nos falem com verdade. Como se costuma dizer, não nos atirem areia para os olhos.
O Colégio de Pediatria da Ordem dos Médicos tem reunido e falado sobre estas questões, ou não?
Vai desculpar, mas, enfim, esses assuntos internos… Os Colégios de especialidade são órgãos consultivos da direcção da Ordem dos Médicos. E como tal, sempre que os colégios são confrontados com alguma situação, ou por solicitação de corpos directivos da Ordem, ou porque se deparam com alguma situação de preocupação especial, elaboram documentos internos que submetem ao Conselho Nacional e ao bastonário. E depois cabe ao Conselho Nacional apreciá-los, e convocá-los ou não. As agendas de trabalho dos colégios são assuntos que vão decorrendo das condições que existem, mas são submetidas internamente à direcção.
Independentemente de querer falar sobre isso, pode-me dizer se sente que, antes da pandemia, havia maior liberdade de debate e de discussão sobre questões de saúde pública? Tanto no seio da Ordem dos Médicos como fora?
Havia seguramente menos confrontação, porque pisávamos todos um terreno mais conhecido do que esta situação [da pandemia] que, de repente, saiu completamente do controlo. A Ordem dos Médicos provavelmente precisará – na sua renovação, e os seus corpos vão ser renovados muito brevemente – de analisar a transparência do funcionamento. E uma gestão transparente de documentação. Todos os colégios e os órgãos técnicos da Ordem submetem determinados documentos à direcção, e depois cabe à direcção, como lhe disse, aprová-los ou não. E, enfim, gerir as agendas conforme entende que o deve fazer. Mas sempre houve situações em que uns pensavam de uma maneira e outros pensavam de outra. Acontecem seguramente situações em que a opinião desta especialidade é num determinado sentido e a opinião de outra especialidade é num sentido diferente. Por exemplo, a questão da criação da Medicina de Urgência é um assunto que não é pacífico. Os maiores colégios dentro da Ordem dos Médicos têm uma opinião diferente da maioria dos outros colégios.
Hoje pressente-se que há uma espécie de veto de gaveta, que determinado tipo de pareceres chegam ao bastonário e não vão ao Conselho Geral. Isso também aconteceu com os outros bastonários?
Não sei dizer. Eu só conheço a minha “paróquia” [Colégio de Pediatria]. Não tenho uma visão global para ter uma opinião informada.
Mas houve pareceres do Colégio de Pediatria que nunca foram desengavetados?
Repare, há numerosas situações com as quais a Ordem dos Médicos lida no dia-a-dia, onde o ponto de vista de determinada especialidade pode colidir com o ponto de vista de outra especialidade. Por exemplo, em relação à criação de algumas áreas de subespecialidade. Portanto, o conhecimento médico vai evoluindo; costuma dizer-se que um tipo começa por saber quase nada sobre quase tudo, e depois vai sabendo cada vez mais sobre cada vez menos, até que um dia sabe quase tudo sobre quase nada. E o conhecimento médico tem muito disso. Há áreas em que a tecnologia de diagnóstico, de terapêutica, da fisiopatologia, avançou com tal rapidez, e com tal profundidade, que é impossível dominar todos os assuntos. No caso da pediatria é um pouco como a Medicina Interna das crianças. Toda a gente compreende que se um tipo está doente do coração, tem um cardiologista; se está doente da “tripa“ tem um gastroenterologista, enfim; e por aí adiante. A pediatria era vista como a especialidade dos leitinhos e das papinhas.
E não é…
Ora, não é. É uma medicina interna do grupo etário com uma diferenciação extrema em numerosos domínios. E por isso faz sentido, do nosso ponto de vista, que haja médicos que se dedicam mais à nefrologia ou à oncologia pediátricas porque é diferente. E por isso nós defendemos que haja subespecialidades em determinadas áreas em que se justifica. E isto colide com o ponto de vista de colegas da especialidade paralela de adultos, que acham que eles é que vão a todas. E, por exemplo, a criação da subespecialidade de alergologia pediátrica é uma situação de conflito extremo, que chegou até aos tribunais! Há anos criou-se um ciclo de estudos especiais para alergologia pediátrica – portanto para pediatras que se quisessem dedicar-se especificamente a isso e que durante dois anos se dispusessem a trabalhar especificamente nessa formação –, e o Colégio de Alergologia dos adultos tentou impugnar em tribunal. Portanto, há interesses que são contraditórios mesmo no interior da Ordem dos Médicos. E pelos motivos que bem conhece, e não precisa que seja eu a explicar-lhe.
[risos] Bom, na verdade a própria Sociedade Portuguesa de Pediatria, é quase como uma…
É uma federação… e hoje é cada vez mais.
Com idade inferior a 18 anos, em Portugal temos um pouco menos de dois milhões de pessoas, portanto 20% da população. As complicações de saúde em idade pediátrica são assim tantas que justifique tanta subespecialização?
Sim, e numas áreas mais do que outras. Repare; há um número importante de doenças que começam cedo, cada vez mais cedo. Têm a ver com a exposição ambiental, que se vai modificando; mas também com factores genéticos. Se eu pegar no caso, por exemplo, da doença inflamatória do intestino – como a doença de Crohn ou a colite ulcerosa –, num adulto ou numa criança são quadros substancialmente diferentes. A componente genética é claramente mais importante quando a doença aparece aos cinco ou aos 10 anos do que quando aparece aos 40. E é preciso ter isto em devida ponderação. As crianças com doenças congénitas que precisam de transplante de medula óssea – e que são por imunodeficiências – precisam de uma medicação diferente da dada ao tipo que faz um transplante porque tem um cancro. Se não houver este conhecimento específico – e do tipo de medicamentos que se usam antes e depois em cada um destes casos –, os resultados naturalmente não são satisfatórios. Por exemplo, numa área que domino melhor: a colite ulcerosa num adulto geralmente é uma colite segmentar, de uma pequena porção do intestino grosso, enquanto a grande maioria das crianças com uma colite, esta envolve todo o intestino grosso. O risco cirúrgico e de complicações é diferente. Isto é verdade também para as outras áreas.
As crianças e os jovens estão agora menos saudáveis do que estavam há dez ou vinte anos atrás?
Não acho que estejam menos saudáveis. Há mais doenças com expressão precoce; há mais diagnóstico precoce. Portanto, há situações que há uns anos eram diagnosticadas ao fim de cinco ou seis anos de doença e que hoje são diagnosticadas muito mais cedo. Por isso, não tenho uma resposta clara sobre se há mais ou não. Em algumas doenças há seguramente mais, mas em relação a outras há mais conhecimento e, portanto, há uma identificação mais precoce, e há condições de tratamento mais eficazes.
É um bocado como aquela velha piada: não há pessoas saudáveis; só há pessoas mal diagnosticadas…
[risos] É isso…Um tipo são é um doente mal estudado… Deixe-me dar mais um exemplo também muito corrente: a doença celíaca. Os pediatras conhecem a doença celíaca há uma data de anos, e os médicos dos adultos começaram a conhecê-la há muito menos tempo, porque os doentes adultos nem sequer iam ao gastroenterologista. Andavam no reumatologista, porque tinham dores nas articulações; no hematologista, porque tinham anemia; na ginecologia, porque não conseguiam engravidar. Enfim, tinham manifestações que não apontavam para a origem real do problema e andavam noutras áreas. E como este, há vários outros exemplos que se podem citar.
Antigamente, se as crianças e adolescentes não estivessem mesmo doentes, não iam com regularidade ao pediatra.
Claro. Também o facto de haver um acompanhamento não só na doença, mas também na saúde, permite que alguns diagnósticos se façam mais precocemente e, portanto, que haja tratamentos mais eficazes. Em algumas doenças significa que se anda mais tempo a ser tratado, mas também se ganhou alguma qualidade de vida.
As alterações sociais e ambientais – por exemplo, a poluição ou agora haver mais população urbana do que rural – vieram criar uma maior panóplia de eventuais problemas de saúde na infância?
Sem dúvida nenhuma, e há estudos interessantíssimos sobre essas matérias… Há um colega canadiano que se dedica a estudar especificamente a epidemiologia da doença inflamatória do intestino, e que estuda grupos populacionais, tanto da população local canadiana como de grupos de imigrantes; e em que se mostra claramente que os imigrantes da África ou da Ásia quando emigram para o Canadá têm uma prevalência baixa da doença inflamatória intestinal; mas os seus filhos que nasceram no Canadá, e que comem o que comem os canadianos, têm um aumento dramático da prevalência desta doença. Quer dizer, têm a mesma genética, mas têm uma exposição diferente e o aumento da prevalência dessa doença é enorme. Garantidamente que a nossa exposição ao ambiente condiciona toda a nossa biologia. Ganhamos umas coisas, perdemos outras.
Se os agentes ambientais actuarem na fase de crescimento, isso é um factor de agravamento? Por exemplo, é indiferente, ou é pior, começar-se a fumar aos 15 anos ou começar-se a fumar aos 25 anos?
Uma pessoa cresce mais e mais depressa nos primeiros dois anos de vida do que no resto da vida. E, portanto, numa fase de crescimento rápido, se houver, no início da adolescência, alguma doença que influencie a capacidade de crescimento, obviamente que as consequências são muito mais graves. Graves em termos de crescimento.
Sim, mas ao fim de 20 anos a fumar, é indiferente ter começado aos 15 ou aos 25?
O efeito é cumulativo. Determinados estímulos, como por exemplo o tabaco, são irritantes das mucosas, do epitélio respiratório, e causam algum tipo de displasia e de alteração. Quanto mais o agredir, maior é o risco de haver uma linhagem celular que se afasta do que devia e levar a consequências mais graves. É pouco provável que alguém tenha cancro do pulmão por ter fumado um cigarro. Mas se fumar não sei quantos anos, enfim, o risco é real, para além de doenças vasculares e de outras complicações.
Há pouco estávamos a falar sobre a questão dos pais serem cada vez mais superprotectores. Vê que os jovens têm maiores riscos, sobretudo ao nível da adolescência, por exemplo no consumo de álcool ou de tabaco… Onde se deveria apostar mais para que as crianças e os adolescentes venham a tornar-se adultos mais saudáveis do que nós?
[risos] Se eu soubesse responder-lhe a isso em 30 segundos, tinha ganhado o Prémio Nobel… Bom seria que houvesse alguma resposta mágica para isso.
Mas quais deveriam ser as prioridades?
Aquilo que cada um de nós é depende da genética, dos traumas que se teve, dos amores e os desamores que se teve, com o sítio onde se trabalha, com os hábitos que se tem, com o que se come… Enfim, é uma equação tão complexa e com tantas variáveis que não há uma resposta simples. Em relação à acção possível dos pais, se estes forem superprotectores e tratarem o menino como um frasquinho de cheiro, e o menino vive infantilizado durante a vida toda, provavelmente vai ser um adulto inseguro, frágilzinho, que não é capaz de resolver problemas. Se os pais o deixarem ir para a varanda e fazer o que lhe apetecer, corre o risco de cair e partir a cabeça. Portanto, tem que haver senso, tem de haver uma intervenção multidisciplinar em muitos domínios. A questão, por exemplo, dos filmes e da televisão, da extrema violência: é evidente que se uma criança vir uma cena qualquer de violência sozinha, ou se um adulto estiver ao lado e lhe explicar que isto não se faz, e é um disparate porque causou mal a outras pessoas, ela vai aprendendo a contextualizar, vai aprendendo os valores que se devem prezar e o que é a transgressão. Portanto, é necessário que os pais sejam capazes de ajudar os filhos a crescer, mas compreendam que eles crescem. E que num belo dia têm que sair debaixo das saias dos pais.
Mas os filhos cada vez saem mais tarde da tutela dos pais…
A média nacional já ultrapassa os 30 anos [33,6 anos]… Há uns anos, na Escandinávia, aos 10 anos os pais diziam: “ó meu filho, vais lá para o alojamento do colégio e governas-te“. Gostar muito dos filhos é fantástico, mas convém perceber que eles têm de crescer e aprender a ter as suas próprias defesas e a resolver os seus próprios problemas. E, portanto, este equilíbrio, entre o que é prudente fazer e o que é disparatado e infantilizado, é muito delicado. Na pediatria, nós vivemos isso com alguma frequência nos doentes crónicos, quando os passamos para a consulta dos adultos. Se não tiver havido um processo de preparação progressiva – e não estou a falar ao nível dos médicos –, um dia entregamos os doentes aos médicos de adultos e os miúdos caem do céu aos trambolhões. Há anos, eu tinha uma consulta com um colega de adultos para os doentes que cresciam, e um dia ele telefonou-me a dizer que “já está aqui no consultório o fulano e eu lá fui, passei por ele e fiz-lhe uma festinha na cabeça“. Quer dizer, a um bebé de um metro e oitenta… E o meu colega olhou para ele, pasmado, e disse; “olhe que eu não lhe vou fazer isso“. Se não tivermos alguma cautela, os meninos passam para a consulta dos adultos e dizem: “então o meu papá não vem?“, e os pais ficam em pânico.
Nota agora um certo “atraso no desenvolvimento” dos jovens?
É uma infantilização, que é muito generosa num determinado momento, mas depois pode passar a ser um problema. E hoje a transição de cuidados é um assunto muito sério. Eu estive há pouco numa reunião a tratar disso, e vou estar em mais no próximo ano. Por um lado, nós vamos tentando que os adolescentes nessa fase sejam cada vez mais autónomos e que sejam eles a responder em vez de ser o papá ou a mamã; que sejam capazes de conhecer os seus problemas, os medicamentos que tomam… Mas os nossos colegas que tratam de adultos não estão, por vezes, preparados para os receber. E em algumas doenças nem sequer as conheciam, porque havia doenças que matavam na infância e, portanto, nunca chegavam aos dos adultos. Para algumas doenças metabólicas, há médicos de adultos que nunca tinham visto nenhuma.
Não seria então mais sensato que, em vez de haver essa transição para determinado tipo de doenças, o pediatra continuasse a acompanhar esses doentes na fase adulta?
Isso acontece. Há muitos anos, em 1988, fui pela primeira vez aos Estados Unidos a um congresso, e visitei um serviço que atendia jovens com doença digestiva, e perguntei à enfermeira com que idade é que eles faziam a transição para os adultos. E ela disse-me: “olhe, isso realmente é um problema; eles não querem ir e os médicos não os querem mandar, e por isso já combinámos que quando eles forem mais velhos que as enfermeiras têm de sair daqui“. Portanto, isto há 40 anos, não é? Este problema é muito antigo, existe em todos os sítios, e das duas, uma: ou cada um de nós, da mesma maneira que tem um bilhete de identidade, tem um médico que o acompanha até aos 80 ou 90 anos, ou então temos de definir que cada um trata ao seu nível de intervenção. De contrário, qualquer dia temos na sala de espera um bebé de seis meses e um velhinho de 80 ou 90 anos, ambos à espera de ser consultados pelo mesmo médico [risos].
[risos] Aí é que não havia mesmo pediatras… Já agora, há pediatras suficientes, ou estamos com o mesmo problema que noutras especialidades?
Aqui também a resposta não é simples. Serem suficientes ou não, depende daquilo que precisarmos. Eu tive um director de serviço nos anos 1980, que achava que as criancinhas deviam ter pediatra, tanto o filho do pedreiro como do juiz. E, portanto, os consultórios dos pediatras estavam cheios, não só de gente com muito dinheiro como de gente com menos dinheiro. Depois, com a implementação do Serviço Nacional de Saúde (SNS), o único sítio onde se encontra um pediatra é dentro de um hospital. E, portanto, isso também explica porque é que os serviços de urgência estão atafulhados. Se acharmos que todas as crianças, pelo menos naquele período mais vulnerável, nos primeiros dois anos de vida, precisam de ter um médico com competências específicas de pediatria, talvez haja margem para mais alguns pediatras. Quem achar que os pediatras devem ficar à espera que alguém os procure nos hospitais ou nas clínicas particulares, provavelmente teremos pediatras que cheguem. O nosso problema não é tanto como em algumas especialidades – que têm carência de especialistas – é mais a sua distribuição e é a maneira como o SNS os atrai. Quando acharam, há uns anos, que o SNS devia ser gerido como uma qualquer empresa, a nível de ofertas e atractivos, façam, mas paguem.
Hoje é muito fácil arranjar uma consulta de pediatria no privado, mas no SNS deve ser muito mais complicado, não?
Não tenho também uma resposta muito clara. Depende da forma como cada serviço se organiza, mas julgo que não é muito complicado. Em algumas áreas, provavelmente mais do que noutras, mas desde que haja referenciações adequadas é fácil, mas há áreas em que realmente a resposta ainda é abaixo do que seria desejável.
Qualquer criança e jovem em Portugal tem hoje pediatra e médico de família?
Depende das zonas do país. Como sabe, há uma parte da população ainda a descoberto dos médicos de família. Há áreas onde os serviços são mais estruturados e têm maior capacidade de resposta. Noutras, infelizmente, menos.
Transcrição de Maria Afonso Peixoto
A primeira parte da entrevista pode ser lida aqui.