A farmacêutica francesa Sanofi, em articulação com a anglo-sueca AstraZeneca, conseguiu, no passado dia 4 de Novembro, a aprovação pela Comissão Europeia da sua vacina contra o vírus sincicial respiratório (RSV), que causa uma das mais banais infecções em crianças e idosos, que só constitui preocupação relevante para um grupo muito restrito com comorbilidades (e onde já existia medicamento preventivo).
Também a Pfizer, a Moderna e a GlaxoSmithKline se encontram em fase avançada de testes, muito interessadas neste novo filão de negócios das vacinas, “empurradas” pela covid-19, que levam a saltarem-se fases à boleia de uns políticos menos prudentes e de uma imprensa histérica.
Obviamente, as farmacêuticas com as suas novas vacinas contra o RSV querem repetir a “dose” do SARS-CoV-2. Desejam um ambiente de pânico e de interesses promíscuos com os diferentes “autores sociais”, que, tal como se observou na covid-19, aliado a um voluntarismo irracional, resultou numa estratégia de vacinação maciça e praticamente coerciva, injectando quem se devia (por razões de verdadeira emergência e relevância) e quem não se devia nem era prudente fazê-lo, de que os jovens adultos, adolescentes e até crianças são exemplo.
Nada agora é por acaso.
Por exemplo, não é por acaso que a imprensa lançou profusas e alarmantes notícias nos primeiros dias de Novembro sobre surtos de RSV. No Google News surgem 190 notícias na última semana quando se pesquisa pelo termo VSR.
Também não foi por acaso que o Instituto Nacional de Saúde Dr. Ricardo Jorge começou inopinadamente a divulgar os números de internamentos por RSV (que sempre ocorreram em outros anos) apenas a partir de meados de Outubro passado. Foi para preparar a “cama” e assustar pais.
E também não foi por acaso que o Expresso, certamente em prol do bem comum, se associou esta semana à Sanofi – leia-se, estabeleceu um acordo comercial, que terá (?) de constar no Portal da Transparência do Infarmed – para fazer uma tertúlia em redor do RSV. Pomposamente, chamaram à “coisa” RSV Summit.
Teve isto tudo presença de uma jornalista (Ana Patrício Carvalho, da SIC Notícias), como mestre-de-cerimónias, do CEO da Impresa, Francisco Pedro Balsemão, e da directora-geral da Sanofi Portugal, Helena Freitas, e até, hélas, a moderação de Carolina Patrocínio.
No vídeo de marketing desta iniciativa meteu-se, obviamente, umas imagens de ventiladores e máscaras em crianças… Nada é inocente.
Que as farmacêuticas desempenham um papel crucial na sociedade, que são responsáveis por avanços fundamentais no combate às doenças e na melhoria das condições de vida, não tenhamos dúvidas. Que podem e devem ter lucros, não sejamos invejosos.
Porém, não cabe à imprensa “aliar-se” às farmacêuticas, como se acentuou pornograficamente nos últimos anos, e que retirou e retira ao jornalismo a visão crítica, isenta e independente à gestão da pandemia da covid-19.
A pandemia da covid-19 não pode jamais ser o “abre-se, sésamo” para a entrada definitiva na caverna do tesouro que se julga poder salvar a imprensa mainstream do fracasso da má qualidade jornalística.
Era bom, aliás, que a prudência e mesmo a desconfiança – grandes virtudes do jornalismo, a par da memória e da investigação – levassem a um olhar distante sobre as novas vacinas contra a RSV, tal como deveria existir face às vacinas contra a covid-19.
Talvez poucos saibam quais as razões pelas quais uma doença respiratória como a causada pelo VSR não teve nenhuma vacina nas últimas décadas. Talvez seja importante recordar, tanto mais que, apesar de ser doença banal causa mais de 100 mil mortes por ano, sobretudo em países subdesenvolvidos. Está tudo contado, em detalhe em dois artigos científicos: em 2011 na Expert Review of Vaccines, e em 2016 na Clinical and Vaccine Immunology. Em 1967, após anos de ensaios, uma vacina RSV inactivada com formalina combinada com alúmen foi administrada em bebés nos Estados Unidos. Ao contrário daquilo que os ensaios apontavam, a vacina não foi eficaz; e pior, aumentou a gravidade da doença. As hospitalizações foram muito mais prevalentes no grupo vacinado do que entre o grupo de controlo, “vacinado” com placebo: 80% contra 5%. Duas crianças morreram por causa da vacina.
Estes, e outros artigos científicos, explicam os processos microbiológicos, citoplasmáticos e outros que tais que levaram a este fracasso e a uma exacerbação da doença após a toma daquela vacina.
Não significa que as novas vacinas contra o RSV – e, por maioria de razão, contra o SARS-CoV-2 – tenham problemas similares, em dimensão àquela vacina. Na verdade, as vacinas são uma história de sucesso no desenvolvimento tecnológico da Humanidade, sobretudo a partir da segunda metade do século XX.
Mas, para isso, e sobretudo, para que nenhuma má vacina seja a nódoa que cai no melhor pano, estragando-o irreversivelmente, convém muito que o jornalismo e as farmacêuticas joguem em bancos diferentes, não comunguem do mesmo repasto.
Isso não está a suceder com a vacina contra a VSR. Veja-se a título de exemplo com a Sanofi. Além de conteúdos patrocinados sobre a VSR, o Expresso também tem uma parceria comercial com esta farmacêutica francesa para a gripe (Flu Summit), e este ano encontramos também as mesmas relações comerciais sob a forma de artigos comerciais escritos em estilo jornalístico em outros órgãos de comunicação social, como no Observador, ou ainda sob a forma de patrocínios para prémios, como sucede com o Jornal de Negócios.
Se se fizer uma rápida busca nos sites da imprensa mainstream de âmbito nacional enco9ntramos uma profusão de eventos e outras iniciativas patrocinadas – leia-se, financiadas – pelas mais distintas farmacêuticas, sempre apresentadas sob a forma de parcerias.
Só um ingénuo não consegue concluir que este tipo de eventos – onde, ademais, participam dirigentes das farmacêuticas, responsáveis do regulador (Infarmed), médicos, jornalistas e administradores dos media, e até por vezes políticos – condicionam fortemente a saída de notícias isentas e independentes sobre farmacêuticas e os seus produtos. A forma como (não) houve debate em torno da eficácia das vacinas contra a covid-19, ou o tom quase sempre encomiástico com que estas foram abordadas pela imprensa, são exemplos claros. E isso pode suceder, ou estar a suceder, com muitos outros medicamentos. Nos últimos anos abriu-se uma caixa de Pandora.
A falta de análise crítica aquando da vacinação dos adolescentes e crianças – de que são exemplos a despublicação do artigo de opinião do médico Pedro Girão no Público em Agosto do ano passado e a cobertura mediática das campanhas inquisitoriais da Ordem dos Médicos sobre clínicos que contestavam a vacinação universal – foi particularmente chocante, e não pode ser vista como algo alheio à dependência financeira da imprensa mainstream com as farmacêuticas.
Hoje, no quadro desta dependência, seria impensável que fosse publicado um artigo a destacar que um determinado país retirara 800 mil lotes infantis de vacinas de uma farmacêutica por ser fraca. Por um lado, porque as autoridades reguladoras se politizaram, e os media mainstream se sujeitaram a essa dependência em relação às farmacêuticas.
Veja-se, aliás, como políticos, farmacêuticas e imprensa apresentam agora as vacinas contra a covid-19: não são ineficazes contra a variante Ómicron; o SARS-CoV-2 é que consegue escapar aos anticorpos criados pela “vacina eficaz”. Hoje, temos “consensos sociais” criados e impostos pelos jornalistas, enquanto os departamentos de marketing da imprensa mainstream onde trabalham esses jornalistas abrem as portas dos cofres para a entrada de dinheiro das farmacêuticas. Isto não é apenas promiscuidade; em Portugal, pela Lei da Imprensa, é ilegal.
A prazo, esta promiscuidade nem sequer será útil para ninguém: nem para as farmacêuticas – que “compram” uma comunicação favorável, o que as incentiva a serem gananciosas e também negligentes em aspectos cruciais até ocorrer uma “explosão” – nem para a imprensa mainstream, que em cada uma destas parcerias, e com tão dengosa postura, definham cada vez mais a sua credibilidade. E a sociedade deixa de a considerar o seu watchdog. Com isto, perde também a sociedade.
Por isso, termino com as duas questões do titulo. Conhecendo a história da primeira vacina contra o VSR e perante as agora promíscuas relações da imprensa com as farmacêuticas, não me sinto nada seguro. Mesmo se o “consenso social”, que agora se exige, me diga que nada há para temer.