Portugal tem um novo herói. Chama-se Manuel de Jesus Pires, mas podemos tratá-lo como Tenente Pires. Foi ele o administrador da Vila de Baucau durante a invasão de Timor pelos japoneses, em 1942, e liderou a resistência ao invasor, tendo salvado quase uma centena de vidas numa altura em que o regime do Estado Novo abandonou portugueses à sua sorte. A sua história é agora uma série de ficção da RTP com o título Abandonados.
A ser emitida a partir desta quarta-feira, dia 21, e com realização de Francisco Manso, a série conta com sete episódios, de 50 minutos cada, debaixo de um título que reflecte bem o que esteve em causa durante aquele período em que não houve qualquer ajuda vinda da Metrópole.
A invasão de Timor pelas tropas japonesas e a resistência que se seguiu é um episódio longínquo da História de Portugal, e que remonta a Fevereiro de 1942, escassos dois meses após o ataque japonês à base norte-americana em Pearl Harbor, no Havai. Marcou um momento de tensão entre o regime de Salazar, os aliados britânicos e o regime fascista de Hitler.
Esquecidos e abandonados em Timor, na luta persistente de um militar – o Tenente Pires, que contra todos os obstáculos e dificuldades, criados aliás pelo próprio governo de Salazar, tudo fez para salvar os seus companheiros, até ao seu sacrifício final.
Esta série mostra-nos “os caminhos tortuosos da política e dos interesses dos estados sobrepondo-se aos interesses individuais, com toda a carga de injustiça e de desumanidade que muitas vezes isso acarreta, conferindo a Abandonados um significado universal”, diz a RTP na apresentação deste trabalho.
A nova aposta do canal público na ficção, que teve recentemente uma apresentação no cinema São Jorge, em Lisboa, resulta da adaptação do livro Timor na II Guerra Mundial: o diário do Tenente Pires, editado pelo ISCTE, cujo autor, o historiador António Monteiro Cardoso, é também responsável pelo argumento – mas que não chegou a ver o resultado, visto ter falecido em 2016.
“Baseada em factos reais, esta série recorda a aliança inédita entre Portugueses, timorenses e australianos unindo-se contra um inimigo comum que não hesitava em cometer as maiores atrocidades contra as populações locais e contra todos os que se lhe opunham”, acrescenta a RTP.
O papel do Tenente Pires é interpretado pelo actor Marco Delgado, que comparou as façanhas deste “herói” à história de Aristides de Sousa Mendes, o cônsul português de Bordéus que desobedeceu às ordens de Salazar e permitiu a fuga dos refugiados judeus. Aristides Sousa Mendes teve o seu nome banido do reconhecimento público durante o tempo do Estado Novo, sendo apenas reabilitado após o 25 de Abril de 1974.
Marco Delgado disse ao PÁGINA UM que “para além de ter sido emocionante” assumir este papel, considera que o papel do Tenente Pires “é mais um nome desconhecido que “deve ser revelado e é importante que a RTP siga esta linha de prestar homenagem a verdadeiros heróis portugueses”.
Embora seja um trabalho de ficção, a série conta, por exemplo, o episódio verídico da saída do Tenente Pires da ilha timorense a bordo de um submarino para pedir apoio aos australianos e como, sem ter sucesso nessa missão, regressou a Timor para continuar a resistência, mesmo sabendo que lhe custaria a própria vida.
“Para mim era importante, moralmente, prestar-lhe a devida homenagem”, acrescenta Marco Delgado que, a partir de agora, poderá juntar o rosto do Tenente Pires à sua galeria de personagens.
O realizador Francisco Manso destacou ao PÁGINA UM que o Tenente Pires, “não sendo conhecido como uma pessoa anti-regime, era um militar à antiga e mantinha a crença de defender todos até à morte, sobretudo após o abandono pelo regime”. Uma situação que, mais tarde, em 1961 será de novo colocada na invasão da Índia portuguesa, mas com um desfecho diferente.
Estima-se que morreram cerca de 50 mil pessoas durante os três anos e meio da ocupação japonesa de Timor. A série está já prevista para ser exibida na televisão de Timor, tendo havido, há um mês, uma apresentação pública na antiga ilha portuguesa.
Com a acção a desenrolar-se entre os anos de 1942 a 1945, Francisco Manso refere que, ao longo das filmagens, em termos cinematográficos, há filmes que “não deixam de ser uma referência” como os clássicos A Ponte do Rio Kwai e ainda Feliz Natal, Mr. Lawrence.
Inicialmente prevista para ser filmada no cenário natural de Timor, as restrições da pandemia obrigaram a uma mudança de planos. Assim, as matas da antiga província portuguesa na Ásia foram recriadas num outro território bem português, mas próximo da costa de África: a ilha da Madeira.
A Floresta Laurissilva da Madeira, um cenário luxuriante de espécies indígenas e anteriores à chegada dos navegadores portugueses àquelas paragens, ofereceu as imagens e cenário natural para se poder contar esta história.
A “magia” da ficção está nestes pequenos detalhes, que levaram Marco Delgado a recordar, por exemplo, o facto de estarem a filmar com temperaturas baixas, mas de forma a dar a entender que estavam a suar em pleno Verão na zona do Pacífico.
Fazem ainda parte do elenco de Abandonados, os actores António Pedro Cerdeira, Elmano Sancho, Luís Esparteiro, Maya Booth, Soraia Tavares, Virgílio Castelo, Chico Diaz, Sabri Lucas, Francisco Froes, Joaquim Nicolau, Marques D’Arede, Jorge Pinto, Rodrigo Santos, André Albuquerque e Paulo Calatré.
Vítor Norte, que tem sido uma presença regular na vasta filmografia de Francisco Manso, é outro dos actores que dão corpo às personagens envolvidas neste episódio da História de Portugal e da II Guerra Mundial, referindo-se como curiosidade acrescida que, ao interpretar o papel do juiz Nepomuceno dos Santos, tem a particularidade de encarnar o homem que era o pai do cantor Zeca Afonso, autor do “Grândola Vila Morena”.
Abandonados estreia dia 21 de Dezembro, às 21 horas na RTP1, havendo antestreias na RTP Play a partir das 12 horas.