O conhecido médico João Júlio Cerqueira, uma das voz mais activas durante a pandemia, viu o Tribunal da Relação confirmar o crime de difamação contra especialista de Medicina Tradicional Chinesa, Pedro Choy. No seu agora infame blogue e mural do Facebook intitulado Scimed, que deixou de estar activo a partir de Maio passado, contando então com mais de 78 mil seguidores, Cerqueira proferiu incessantes insultos a Choy em 18 publicações nas redes sociais durante quase dois anos. O médico-blogger já tinha sido condenado na primeira instância a pagar uma indemnização de 15.000 euros e mais 3.000 euros de multa por difamação agravada.
Quem semeia insultos, colhe condenações. João Júlio Cerqueira, médico tornado blogger, foi condenado pela segunda vez por insultos proferidos contra o mais reconhecido especialista em Medicina Tradicional Chinesa em Portugal, Pedro Choy. A notícia foi avançada no final desta tarde pelo jornal Público, e o PÁGINA UM revela agora na íntegra o acórdão do Tribunal da Relação proferido em 25 de Outubro passado, e que transitou em julgado este mês.
Cerqueira, que operava o blogue Scimed, já tinha sido condenado na primeira instância ao pagamento de uma indemnização de 15.000 euros, além de 3.000 euros de multa pelo crime de difamação agravada. Vai ter mesmo de pagar estes montantes, não tendo conseguido convencer os desembargadores da justeza dos seus insultos.
Na verdade, mesmo considerando que Pedro Choy é uma “figura pública”, o que permitiria a eventualidade de lhe dirigir críticas mais acérrimas, os três desembargadores consideraram, no seu acórdão, que “as publicações e as expressões pelo arguido [João Júlio Cerqueira] concretizadas na internet e dadas como provadas, (…) possuem um carácter manifestamente pejorativo da pessoa do ofendido, situando-se no puro plano pessoal, com contornos xenófobos inadmissíveis, como é flagrante no uso da expressão ‘chop choy’, para além de se reportarem ao seu carácter (apelidando-o de ‘charlatão’, ‘vendedor de banha da cobra’, ‘costureiro de pele’, ‘desonesto’, ‘ignorante’, ‘básico’, ‘mentiroso’, ‘burro’), por forma a o enxovalhar e humilhar, sendo manifestamente atentatórias da honra e consideração da pessoa daquele, em concreto, estando para além de qualquer crítica à Medicina Tradicional Chinesa”.
Acrescentam ainda os desembargadores que, além de ter exprimido “juízos de apreciação e de valoração pessoais, que ultrapassam o âmbito da crítica sustentada”, João Júlio Cerqueira ainda fez mais e pior: “deturpou e distorceu as afirmações prestadas por Pedro Choi (…), formulando interpretações e as ‘traduções’ que bem entendeu, por forma a desacreditá-lo, ao lhe atribuir a prolação de frases distintas das proferidas pelo mesmo, evidenciando-se a manifesta intenção de o rebaixar e humilhar.” Os magistrados são peremptórios: “o arguido [agora duplamente condenado] distorceu e deformou, deliberadamente, o significado das palavras” de Pedro Choy.
Ao todo, contabilizaram-se 18 publicações e republicações daquele médico da região do Porto no seu blog e na sua página do Facebook denominados Scimed – e que se auto-intitula “Ciência Baseada na Evidência” – e no seguimento de um programa Prós & Contras na RTP1 em 1 de Abril de 2019, em que esteve em representação da Ordem dos Médicos. O tribunal decidiu condenar o médico por um crime de forma continuada.
Cerqueira foi defendido pelo advogado Francisco Teixeira da Mota que já prometeu recorrer da decisão para o Tribunal Europeu dos Direitos Humanos. Este causídico diz que está em causa a liberdade de expressão, embora o acórdão não lhes conceda muitas esperanças. “Em termos de juízo de prognose sobre a hipotética decisão que o Tribunal Europeu dos Direitos do Homem adoptaria se o caso lhe fosse submetido, consideramos que, neste caso, e tal como assim se entendeu na decisão recorrida, que se mostram extravasados os limites toleráveis do exercício da liberdade de expressão, por as expressões, reproduções e imputações dos factos assentes, concretizadas pelo arguido, se dirigiram directamente à pessoa do assistente, sendo ofensivas da honra e consideração que lhe são devidas, nada tendo a ver com uma crítica da sua actuação, ou seja, ultrapassando o âmbito da crítica sustentada, objectiva e equilibrada, que poderia, e tem todo o direito de ter, sobre o entendimento que preconiza, enquanto médico, sobre a ausência de evidência científica da Medicina Tradicional Chinesa ou sobre a eficácia ou ineficácia das respectivas práticas, mas que não se verifica na situação em apreço.”, destacam os desembargadores Anabela Simões Cardoso, Jorge Antunes e Sara Oliveira Pinto.
E concluem: “As expressões utilizadas pelo arguido, nas publicações, da sua autoria, (…) e que foram dadas como provadas, não são essenciais para a expressão da sua opinião, sobre o exercício da Medicina Tradicional Chinesa, que podia ser concretizado sem se dirigir à pessoa, em concreto, do assistente, com emissão de juízos depreciativos que não possuem qualquer conexão com aquele exercício, como sucedeu, no caso.
Os advogados de Pedro Choy prometem avançar agora com uma nova acção contra João Júlio Cerqueira, uma vez que o médico-blogger não pagou ainda a indemnização de 15.000 euros. O Estado aplicou-lhe uma multa de 3.000 euros. Cerqueira ainda tentou em Janeiro passado, quando da condenação em primeira instância, apelar a donativos através do Patreon, mas actualmente não tem qualquer apoiante.
Saliente-se que, curiosamente, João Júlio Cerqueira é filho da também médica Berta Nunes – actual deputada do Partido Socialista, ex-secretária de Estado das Comunidades e antiga presidente da autarquia de Alfândega da Fé –, uma reputada especialista em Antropologia Médica, tendo lecionado esta disciplina na Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro. A sua tese de doutoramento, publicada em livro sob o título “O saber médico do povo”, abrange “a cultura e as práticas do cuidado do corpo e da saúde de uma população rural” transmontana, demonstrando a “importância do conhecimento e valorização dos saberes locais pelo saber oficial”, ou seja, pela medicina convencional. Berta Nunes até já participou mesmo no conhecido Congresso de Medicina Popular de Vilar de Perdizes, no concelho de Montalegre.
Leia aqui o acórdão integral do Tribunal da Relação.