Com a pandemia da covid-19 a dar as “últimas” – com uma taxa de letalidade de 0,1%, por via da Ómicron, por muito que certos media e peritos lhe tentem arranjar descendentes, incluindo “netas” perigosíssimas –, regressaram à normalidade os fluxos hospitalares. Por outras palavras: o caos no Serviço Nacional de Saúde (SNS).
Por muito que o Governo (agora socialista, mas poderia ser outro qualquer) apresente números de investimento, e mais médicos e mais enfermeiros e mais auxiliares, sabemos que fica sempre aquém do desejável para cuidar de uma população que teve o azar de conseguir que lhe “dessem” mais anos de vida, mas no país errado.
Sucede assim que, num país com mais de um milhão de pessoas sem médico de família, e que mais do que duplicou a sua população de super-idosos em apenas duas décadas – o grupo dos maiores de 85 anos passou de 152 mil, no ano 2000, para 328 mil, em 2020 –, não deveria surpreender que os hospitais (e os serviços de urgência, em particular) fossem o primeiro e o último reduto para quem, repentinamente, se sente doente e desamparado. Ainda mais sabendo-se que a literacia sobre saúde é fraca, e as alternativas económicas de ter uma resposta privada rápida não é grande.
Enfim, mas sabemos que, quando o fluxo aperta – isto é, a procura supera a oferta de serviço –, o Governo é lesto a convencer certa imprensa que a culpa é sempre da procura. E da má procura: ou seja, daqueles masoquistas que, supostamente não estando doentes, querem perder tempo e esgotar a paciência indo às urgências pela noite dentro, e madrugada fora, só chatear o Camões.
Sempre assim foi, antes da pandemia; e sempre assim será, agora que saímos da pandemia.
Mas, na verdade, falar hoje nas estafadas falsas urgências é esquecer, é mesmo querer esquecer, aquilo que sucedeu nos últimos três anos, período em que praticamente não se falou de falsas urgências.
De facto, não houve falsas urgências: houve sim, uma torrente de falsas informações e de umas quantas manipulações durante o triénio da dita pandemia – que teve o corolário com as ambulâncias em fila no Hospital de Santa Maria em certa (e única) noite de Dezembro de 2020 – com o trágico e execrável objectivo de desanuviar os serviços de urgência. E isso causou uma tragédia que jamais será investigada nem responsabilizada. É escondida. Mas mal-escondida; e por isso deve ser revelada.
Quando olhamos para os números de 2022 dos fluxos dos serviços de urgência em todo o SNS, verificamos, de facto, que se regressou quase à normalidade pré-pandémica, embora com um crescimento dos episódios pouco urgentes e não-urgentes. Ou seja, com, hélas, as chamadas falsas urgências.
Comparando com o triénio 2017-2019, o ano de 2022 contabilizou mais 15,4% de pulseiras verdes (pouco urgente) e mais 12,7% de pulseiras azuis (não-urgentes). Foram mais cerca de 325 mil assistências que, efectivamente, poderiam ter tido atendimento em outros locais.
Porém, aquilo que o Governo parece querer que esqueçamos – para além de um crescimento em 2022 da ordem dos 5,7% dos doentes muito urgentes (pulseira laranja) face à média do triénio pré-pandémico – é o “bonito” resultado dos apelos da Doutora Graça Freitas e dos responsáveis políticos do Ministério da Saúde para que os portugueses não fossem aos hospitais durante 2020 e 2021 para assim se aliviarem os serviços médicos para o tratamento da covid-19.
Hoje, sabemos que, com excepção dos profissionais adstritos ao tratamento dos doentes-covid – sujeitos a um esforço que merecia melhores recompensas do que um “bater palmas” –, a generalidade dos serviços hospitalares teve um inusitado alívio, por via da suspensão de muitas cirurgias, diagnósticos e consultas. A estratégia de afastar os utentes dos hospitais foi intencional e sem justificação, sobretudo depois do segundo trimestre de 2020.
Contudo, depois desse período inicial, até meio do ano de 2020, nada justificou a quase perpetuação de uma estratégia que quis deliberadamente afastar as pessoas das urgências, através do medo e da intimidação. Ir a um hospital por uma urgência passou a ser quase um acto de falta de civismo e de irresponsabilidade. E tanto assim se fez que fugiram dali mesmo as pessoas que tinham no hospital o único local que as poderia salvar em caso de doença súbita.
Olho para os números de 2020 e de 2021 relativos aos episódios emergentes (pulseira vermelha) e sobretudo os muito urgentes (pulseira laranja) e mesmo os urgentes (pulseira amarela), e não me custa imaginar um sem número de caixões que se fecharam de forma desnecessária e criminosa. A conta – ou pelo menos uma estimativa – poderia ser feita se o Ministério da Saúde libertasse informação.
Comparando estes dois anos (2020 e 2021) com a média do triénio 2017-2019 (e com 2022, cujos valores são praticamente similares ao período pré-pandémico), constata-se que houve menos 8.518 episódios de emergência (vermelha), menos 256.615 episódios muito urgentes (laranja) e menos 1.502.493 episódios urgentes (laranja). Em termos relativos registou-se assim decréscimos de 22%, 23% e 29%, respectivamente.
Ora, tendo em conta que não existe nenhum factor relevante que possa ter feito diminuir em 2020 e 2021 a prevalência de doenças agudas de média e extrema gravidade – que justifique uma redução tão significativa destes casos nos serviços de urgência –, aquilo que sucedeu parece muito simples de inferir: durante os dois primeiros anos da pandemia, os apelos da DGS, dos políticos, de certos “peritos” e dos media mainstream conseguiram convencer as pessoas a “aguentar”; a não irem saturar os hospitais, “coitadinhos”. Tinha de se ser solidário, aguentar em prol de todos, até porque, no fim, “vai ficar tudo bem”.
Muitos destes, mulheres e homens que responderam de forma solidária e humanista, estão agora nas estatísticas do excesso de mortalidade. E coloca-se uma pedra no assunto. E continua-se com o folclore das falsas urgências, porque nos convenceram que temos de ser nós a salvar o SNS; e não o SNS a salvar-nos.
Nota: Não analisei os episódios de pulseira branca e cinzenta, uma vez que a sua utilização pelos hospitais têm, em muitos casos, razões administrativas que não afectam os serviços de urgência. Em todo o caso, genericamente os anos de 2020 e 2021 registaram menos episódios do que nos período pré-pandémico, embora não seja comparável a complexidade dos episódios.