Escritor Ruy Castro, com mais de 20 obras publicadas, escreveu artigo cáustico e irónico sobre Trump e Bolsonaro

Incentivo ao ódio: ERC faz participação ao Ministério Público contra membro da Academia Brasileira de Letras dispensado pelo Diário de Notícias

Statue of Liberty, USA

por Pedro Almeida Vieira // Janeiro 19, 2023


Categoria: Imprensa

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A Entidade Reguladora para a Comunicação Social (ERC) leu literalmente um artigo de opinião irónico e cáustico do escritor brasileiro Ruy Castro, recém eleito membro da restrita Academia Brasileira de Letras, escrito no rescaldo do assalto ao Capitólio em Janeiro de 2021. E decidiu agora enviar uma participação ao Ministério Público por alegado incitamento ao ódio, além de considerar que promove o suicídio. O Diário de Notícias, onde o também jornalista brasileiro de 74 anos colaborava semanalmente desde 2018, não só o dispensou como retirou o polémico texto de linha. Ao PÁGINA UM, Ruy Castro reagiu, dizendo que “nunca me imaginei tão letal – ou que Trump e Bolsonaro fossem tão idiotas.”


Distinguido em Outubro do ano passado como um dos 40 membros da restrita Academia Brasileira de Letras – na gíria literária, classificados como “imortais” –, o escritor e jornalista Ruy Castro foi acusado pela Entidade Reguladora para a Comunicação Social (ERC) de usar expressões de ódio e de incentivo ao ódio contra Donald Trump e Jair Bolsonaro num artigo publicado no Diário de Notícias há dois anos.

A deliberação do regulador dos media portugueses foi aprovada por unanimidade em finais de Novembro, mas apenas esta semana divulgada. O Conselho Regulador – presidido pelo juiz conselheiro Sebastião Póvoas, que estará de saída de funções – remeteu ainda a deliberação e uma participação ao Ministério Público, “uma vez que a peça [de Ruy Castro] pode eventualmente configurar a prática de um crime de incitamento ao ódio e à violência, nos termos do artigo 240º do Código Penal”, sancionável com pena de prisão de seis meses a 5 anos.

Ruy Castro, além de jornalista, é autor de mais de duas dezenas de obras, e um dos 40 membros da prestigiada Academia Brasileira de Letras, fundada em 1897 por Machado de Assis.

Além disto, a ERC recomenda que o Diário de Notícias deveria “doravante exercer um maior cuidado na selecção e edição de artigos de opinião, de forma a acautelar a publicação de textos com as características” do texto do académico brasileiro.

Em causa está um texto, extremamente acintoso mas também irónico de Ruy Castro – que é actual colunista permanente do Tal&Qual desde este mês –, publicado em simultâneo no Folha de São Paulo e no Diário de Notícias no dia 10 de Janeiro de 2021, intitulado “Conselho a Trump: mata-te”. Este foi, aliás, o último artigo do escritor brasileiro de 74 anos no periódico da Global Media, com o qual colaborava desde 2018. Este polémico texto já nem está, aliás, no histórico da coluna do Diário de Notícias, tendo sido retirado de linha, estando assim apenas disponível em sistema de arquivo.

Ruy Castro – autor de celebradas biografias sobre Nélson Rodrigues, Carmen Miranda e Garrincha, e de vários romances, tendo mais de 20 obras editadas em Portugal –  confirmou ao PÁGINA UM que a sua “colaboração no Diário de Notícias [foi] encerrada por causa desse artigo”, dizendo ainda sentir-se “maravilhado de saber que um obscuro cronista brasileiro pode induzir o homem então mais poderoso do Mundo, Donald Trump, e seu carbono brasileiro Jair Bolsonaro a se matarem”. E surpreende-se, de forma irónica, com o alcance do seu escrito: ”Nunca me imaginei tão letal – ou que Trump e Bolsonaro fossem tão idiotas.”

Diário de Notícias dispensou escritor após a publicação de artigo contra Trump e Bolsonaro. Ruy Castro colaborava desde 2018, e este é o único artigo que foi retirado de linha.

No seu texto escrito há dois anos, no rescaldo ao ataque ao Capitólio de 6 de Janeiro daquele ano, Ruy Castro apontava baterias ao antigo presidente norte-americano, dizendo que Trump instigara “o seu gado a tomar o prédio do Congresso e pressionar os congressistas a dar-lhe a vitória”, e que, perante o insucesso, conjecturava que poderia ainda usar os seus poderes presidenciais para “desfechar uma última vingança contra os adversários que o reduziram àquilo que ele mais temeu desde que nasceu: ser chamado de perdedor.”

Num estilo corrosivo, mas dentro daquilo que se considerava as balizas alargadas da opinião, Ruy Castro especulava, em tom de desprezo, sobre a possibilidade de Trump, como perdedor, “querer jogar uma bomba nuclear no Irão […] para complicar a vida de Biden”. Mas propunha uma solução, ou melhor apresentava uma recomendação, “a única atitude capaz de fazer dele, aí sim, um ícone, um símbolo, uma bandeira a ser desfraldada para sempre por seus seguidores idiotizados. E essa atitude seria: matar-se.”

Ruy Castro dizia mesmo que “nós, brasileiros, adquirimos uma certa prática no assunto”, remetendo para o suicídio do então presidente Getúlio Vargas em 1954. O então colunista do Diário de Notícias escreveu que “Trump poderia fazer exatamente como Getúlio”, ou seja, “o tiro na coração, e não na cabeça”, uma vez que “o tiro na cabeça faz uma grande lambança, com sangue, miolos e cacos de osso espalhados pelo aposento”, enquanto “o tiro no peito é absolutamente clean. Mantém o rosto intacto, apto a ser fotografado e servir de modelo para uma máscara mortuária, útil na confeção dos futuros bustos e estátuas – como os que Getúlio tem por todo o Brasil.” E conclui: “Seria uma saída honrosa para Trump, e com a vantagem de nem lhe desfazer o penteado.”

people walking on sidewalk near white concrete building during night time
Ataque ao Capitólio em 2021 suscitou artigo de opinião cáustico e irónico do Ruy Castro, levado à letra pelo Diário de Notícias, que o dispensou, e pela Entidade Reguladora para a Comunicação Social, que remeteu uma participação ao Ministério Público por incitação ao ódio.

Os três últimos parágrafos do polémico artigo de opinião – que também suscitou celeuma no Brasil – foi dedicado a Jair Bolsonaro, que Ruy Castro brinda de “genocida”. Castro recomendava-lhe similar solução – o suicídio –, “mas que não esperasse pela derrota na eleição, e sim que fizesse isto já, agora, neste momento [Janeiro de 2021]. Até porque, fechava, “nenhum minuto sem Bolsonaro será cedo de mais para o Brasil”.

A análise da ERC a este texto aparenta ter sido feita em sentido literal, mesmo nas alusões à questão do suicídio. Na fundamentação, o regulador diz que “tem vindo a acompanhar e a expressar a sua preocupação com a proliferação nos media de mensagens ofensivas e de discriminação étnica e racial, de incitamento ao ódio e à violência, entre outras, seja nas caixas de comentários das diferentes peças editadas online e nas respetivas páginas das redes sociais, seja no contexto da emissão de programas de informação e debate, sobretudo na área do desporto.”

E acrescenta ainda a deliberação do regulador que “embora a peça em apreço não seja uma notícia, mas sim um artigo de opinião, não deixa de ser relevante, no quadro de uma publicação de um órgão de comunicação social generalista, de cobertura nacional, o especial cuidado que se deve ter aquando da menção a comportamentos suicidas, bem como de discurso que possa ser entendido como enaltecedor do suicídio”.

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