VISTO DE FORA

Raspe-se uma parede no Vaticano

person holding camera lens

por Tiago Franco // Janeiro 31, 2023


Categoria: Opinião

minuto/s restantes


Em Maio de 2022, por responsabilidades parentais, dei comigo meio perdido numa pequena igreja plantada no meio do Atlântico, a ouvir um grupo de escuteiros que cantava várias melodias com a palavra “senhor”. Não sou grande ás da religião, mas julgo que se referiam a Ele. Perguntei aos crentes que cruz enorme era aquela de que todos falavam, ali exposta, e simpaticamente explicaram ao ateu que era a cruz que andava pelo Mundo todo, durante anos, até chegar ao local de uma das jornadas da juventude, que em 2023 aconteriam em Lisboa.

A minha relação com a religião, qualquer uma, é de profunda e interessada distância. O que penso sobre o tema daria outro texto, daqueles bons para levar pancada de criar bicho, e como tal fica para outro dia. Percebi nesse concerto, olhando para a dita cruz, que algures em 2023, Lisboa seria invadida por miúdos com mochilas, fiéis ferverosos e o simpático Francisco com a sua entourage

A primeira coisa que me lembro de ter pensado foi como alojar este pessoal todo. Lisboa já rebenta pelas costuras no Verão pelo que, mais 100.000 visitantes, concentrados em três dias, era coisa para fazer mossa. Não voltei a pensar no tema até porque, como se perceberá, não está no meu radar de interesses.

Até que comecou esta discussão sobre o palco dos 5 milhões.

Devo dizer que não percebo bem a gritaria da última semana. Quer dizer, percebo no conceito de coisas feitas em cima do joelho à portuguesa, mas quem debate o tema parece estar a viver uma supresa quando já sabemos, desde 2019, que nos tocaria organizar a coisa. Enquanto ouvia os 380 debates sobre o tema, pensava por que nos tínhamos metido nisto. Não temos dinheiro para mandar cantar um cego e vamos organizar paradas para o Papa, pela alma de quem? Alguém imaginou que a coisa se faria por uma sandes de courato?

Para um ateu é mesmo dinheiro atirado à rua e por isso procurei encontrar conforto na narrativa da recuperação da área. De facto, aquele descampado no Trancão é algo inóspito e eu sou daqueles que gosta da nova cara de Lisboa. Não quero saber se foi o Costa, o Moedas, o Medina ou o Soares. Se Lisboa fica mais bonita, não serei eu a falar mal. Agora… quando vi o desenho do palco, já fiquei com mais dúvidas quanto à recuperacão do espaco e, principalmente, da reutilizacão da estrutura para outros eventos. O que é que se faz num palco cheio de rampas e com aquela cúpula com uma cruz? Um skate park para seminaristas?

person wearing white cap looking down under cloudy sky during daytime

Fiquei realmente preocupado quando ouvi Manuela Ferreira Leite dizer que aquela estrutura traria retorno para a cidade. É que eu sou de uma geracão que ouve há 25 anos como o cimento traz retorno ao país.

Foi a Expo98, que, para lá da óbvia requalificacão de uma antiga lixeira, trouxe dinheiro a construtores e patos bravos do imobiliário.

Depois foi o Euro 2004 que dotaria o país de estradas e infra-estruturas vitais (tínhamos pouquíssimas estradas nessa altura, e ainda nos deslocávamos de charrete pelos pastos), e o resultado foram quatro monos espalhados por Faro, Aveiro, Coimbra e Leiria, sem jogos ou público e com custos de manutenção incomportáveis.

Perdi a conta às auto-estradas, SCUTs e IPs que seriam essenciais para o desenvolvimento do interior, litoral, centro, sul, norte, este e oeste. Algumas estão às moscas, com o Governo a compensar as concessionárias, naquelas PPPs que nos levam há décadas à ruína.

person sitting on concrete seawall

Veio entretanto o Paddy e a sua Websummit, com um patrocínio de milhões do erário público português. Aqui a promessa era da criacão de empregos e atração de investimento. O Paddy ficou rico, os putos nerds trabalham como voluntários num evento onde uma entrada custa uma pequena fortuna e empregos, bom, talvez uns recibos verdes nos hotéis das redondezas.

Portanto, quando me dizem que vão dar uma lavadela na cara do Trancão para receber o Papa, ainda consigo engolir. Quando voltam com a conversa do retorno, tenho a certeza que é mais um daqueles fados malandros.

Qual luz divina, também à boa maneira portuguesa, a presa de última hora resulta em mais não sei quantas trapalhadas. Três empresas apresentaram projectos para a construcão do Papódromo e venceu a mais cara, com menos material reutilizável (uma das solucões era com contentores como o estádio do Qatar), por acaso da Mota-Engil, presença habitual na órbita do Estado.

Outra coincidência engraçada é Paulo Portas, esse engenheiro civil de águas profundas, estar agora na administração da Mota-Engil. Tudo legal, tudo como manda o livro do Antigo Testamento, tudo abençoado. Mas é aquela volta na maionese, sempre com os mesmos actores, empresas e baldes de cimento.

brown wooden stick on brown wooden table

Há 30 anos que vejo as mesmas pessoas, quais satélites na órbita dos contribuintes, aos saltos entre cargos, mas sempre, sempre, com acesso a fatias enormes do Orçamento do Estado.

Já se vende uma semana em Fátima a 8.000 euros, num hotel local, para as datas das jornadas. Quartos privados a 2.000 euros por dia e outras loucuras do género. Os católicos já levantam as forquilhas dizendo que quando se fez a nova mesquita de Lisboa, ninguém se queixou (o que não é verdade, por acaso).

A minha questão é esta: tirando a hotelaria e os patos bravos do cimento, o que é que se ganha com este evento pago por nós? Este e, já agora, os outros feitos num país onde 40% da população está na pobreza. Não quero ser demagógico, mas com tanta gente a precisar de habitação social, não se arranjava melhor destino para os 40 milhões que o evento nos vai custar?

É legal, bem sei. É uma opção política num país laico, certamente. Não podia o Banco do Vaticano fazer uma vaquinha e raspar uma ou outra parede para entregar o ouro à Mota-Engil? Isso é que seria uma multiplicação dos pães bonita de se ver. 

Tiago Franco é engenheiro de desenvolvimento na EcarX (Suécia)


N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

O jornalismo independente DEPENDE dos leitores

Gostou do artigo? 

Leia mais artigos em baixo.