“Hoje em dia as pessoas sabem cada vez mais, e entendem cada vez menos.”
Oscar Wilde (1890)
Concluo hoje a minha série sobre a forma como as grandes ditaduras mantêm os seus povos reprimidos pelo isolamento e pela ignorância recorrendo ao golpe baixo de não lhes permitirem a aprendizagem do inglês – e de, assim fazendo, os impedirem de comunicar com o mundo. Faço-o no dia em que o grande Valete vai subir de novo ao palco do Coliseu de Lisboa para voltar a oferecer aos portugueses a qualidade incomparável da sua noção de métrica, a perfeição inventiva da sua criação de rima, e sim, no caso do Valete podemos mesmo afirmar isto sem ter medo de ninguém[1] – Valete vai, uma vez mais, oferecer-nos a urgência da sua mensagem. Mas, se não for por mais nada então que seja por uma questão de homenagem ao povo da Ucrânia, peço-vos que não se esqueçam de um pormenor nada despiciendo: Valete faz isto tudo porque é um grande artista, sem dúvida, mas também faz isto tudo porque pode. E é por isso que vos conto aqui a história de um outro artista, um amigo de há uns bons trinta anos, que uma noite subiu ao palco do mundo e quis cantar mas não pôde. Chamava-se André. A gente tratava-o por Andrushka.
Estive em Petrozavodsk no final de 1991, quando as estátuas derrubadas de Estaline ainda jaziam aos pés dos seus pedestais, e, por cima das fábricas de aço agora fechadas onde os grandes letreiros em cirílico ainda anunciavam “ESTAMOS A CONSTRUIR O SOCIALISMO”, os artistas de rua do fim do mundo tinham pintado a vermelho, num inglês sempre com alguns erros como se tentassem acertar na ortografia certa sem conseguirem superar ao certo as suas próprias dúvidas, a palavra única “CUIDADO!”. Petrozavodsk não tinha muito mais de trezentos mil habitantes, e hoje ainda tem menos.
É uma cidadezinha industrial encostada à fronteira com a Finlândia, onde na altura toda a indústria estava parada. Quando lá cheguei era indisfarçável estarem todos a viver o momento mais difícial das suas vidas de eternos servos de um regime cruel ou de outro. Nos dois primeiros dias, arroz muito empastado que se comia em três rações diárias ainda tinha misturados uns bocadinhos de carne; mas depois já era só mesmo arroz, seguido de arroz, seguido de cada vez menos arroz.
Se alguém precisasse lá em casa dos serviços de um canalizador ou de um electricista, eles exigiam logo serem pagos à chegada em divisas líquidas ou nada feito – e por “divisas líquidas”, bem entendido, subentendia-se[2] o infame vodka de beterraba da Ucrânia, mais barato e mais rasca do que todos os outros mas mesmo assim vodka à mesma, que até eu já me tinha habituado a beber para não morrer de frio. E, quando eu lhes perguntava “e agora?”, os meus novos amigos respondiam-me, num tom absolutamente neutro de fazer gelar ainda mais o sangue nas veias, “agora em breve será sempre noite… e depois, em Março, se ainda cá estivermos, há de ficar tudo bem.”
A União Soviética acabou exactamente uma semana depois de me ter vindo embora, e nunca mais soube deles.
Tinham todos, como eu, cerca de trinta anos. Embora naqueles dias inflamatórios do reinado de Boris Yeltsin já não corressem os riscos que corriam dantes, as caves afogadas em tabaco, com Músicas Ocidentais e bebidas escaldantes, onde queimavam as noites num tronco nu muito Freddie Mercury[3], entre miúdas de cara de anjo e pernas de dois metros, continuavam a ser todas clandestinas.
Fui levada até esse submundo estranho[4] pelos dois únicos guias do burgo que falavam um certo inglês, aprendido em escolas da Finlândia com autorizações seladas do Politburo, destinado a ser arranhado o necessário e suficiente para mostrar a maquinaria saída de Petrozavods às delegações estrangeiras amigas da URSS, o Miska e o Andrushka.
O Miska abandonara há cerca de um ano o seu posto de dirigente da Juventude Comunista, logo a seguir deixara mesmo de ser militante, e era um homem triste, mais dado a confirmar as palavras dos outros com os seus silêncios do que a fazer ele próprio qualquer tipo de discurso a favor ou contra tudo o que se passava naquela mudança vertiginosa de tempos russos. Limitava-se a ouvi-los e a, por vezes, segredar-me em conclusão “e eu, enquanto fui capaz, fiz o que pude para não ver nada disto.”
O Andrushka, pelo contrário, era um rebelde de longa data, com um romance acabado de escrever que já versava a corrupção na corte moderna onde Putin jogava às cartas com Yeltsin, e um historial bastante respeitável de guitarra-baixo em várias bandas “decadentes[5]” que nunca duravam muito tempo depois de uma série de eventos sinistros. Contou-me, obviamente, muitos filmes de terror. Mas, para mim, nenhuma história poderia ter sido pior do que a da noite em que, quando ele ainda vivia em Moscovo e ainda não tinha feito o seu curso finlandês destinado à propaganda, correu na cidade inteira a total consternação da notícia do assassinato de John Lennon.
“Primeiro pensámos que era mais um daqueles boatos comunistas que eram postos a correr de propósito para nos assustarem”, contou-me ele, com o rosto subitamente muito endurecido. “Depois acabámos por perceber que era mesmo verdade. Ficámos desfeitos. Morrer um de nós, em Moscovo, era uma coisa. Estava sempre a acontecer. Mas morrer o John Lennon, aos quarenta anos, em Nova York, isso era intorelável. Fomos todos para a Praça Vermelha, tu viste o tamanho daquilo mas eu garanto-te que não cabia lá nem mais uma pessoa, e estávamos todos lá para lhe fazermos uma vigília à luz das velas. E, depois de acendermos as velas todas, queríamos cantar o IMAGINE. Queríamos mesmo, mas não podíamos. Nenhum de nós sabia a letra. Tu sabes o que é, quereres cantar e não poderes, e tu sabes cantar, mas nunca pudeste aprender a língua daquela canção, que, no entanto, é a língua de todas as canções? Cantámos em lalala, pronto, e estávamos a cantar e estávamos a chorar porque não podíamos cantar. E depois veio a polícia, e veio o Exército Vermelho, e em meia hora a Praça Vermelha estava deserta, e foi presa muita gente. E eu jurei que havia de mentir tudo o que tivesse que mentir – mas havia de aprender inglês.”
Clara Pinto Correia é bióloga, professora universitária e escritora
[1] Lá estou eu outra vez, não é? E ainda agora comecei.
[2] Hã? Hã? “bem entendido”, vírgula, “subentendia-se”? Meu Deus, sou fixe e não tenho qualquer vergonha!
[3] Eram lixados, aqueles russos. Não conseguiam aceder a nada, pois não, mas conseguiam conhecer muitíssimo bem o número de tronco nu à Freddie Mercury. E também tinham a escola toda na arte do bem disfarçar. Freddie Mercury? Quem é esse, o Freddie Mercury? Sonsinhos.
[4] Mais uma redundância do mais fino estilo, não acharam? Claro que um submundo, por decorrência, é estranho. Eu-sou-boa-nisto, amigos. Enfim, para quem gosta do género.
[5] Leia-se “de hard-rock”, o que não era nada de fácil de montar, e muito menos de manter, num regime onde as guitarras eléctricas e as baterias eram sistematicamente apreendidas – e dizia-se oficialmente que destruídas, embora também se murmurasse que o Aparelho as levava para as suas datchas a título de entretenimento para os mais jovens, que ao menos assim tendiam a recusar-se menos a acompanhar os pais.