Leia em exclusivo em Portugal, esta reportagem do premiado jornalista de guerra Boštjan Videmšek, também publicada esta semana no Boston Globe e no jornal esloveno DELO.
Antes da invasão pela Rússia, a Ucrânia já era o país da Europa com o maior número de crianças institucionalizadas. Mais de 100.000 crianças viviam em orfanatos. A guerra veio piorar ainda mais a situação. Boštjan Videmšek deslocou-se à Ucrânia para relatar a situação que se vive nos orfanatos. Encontrou instituições sem meios, escassos recursos humanos e crianças sedentas de afecto, num país devastado pela guerra que dura há um ano. Nesta reportagem, o jornalista esloveno, que cobriu todos os grandes conflitos e guerras desde 1998 e se tem dedicado ao tema dos refugiados e do ambiente, mostra as dificuldades e os desafios que enfrentam os orfanatos num país dilacerado.
Quando Halyna Bondaruk, líder da instituição de caridade Small Wins, entrou no orfanato na periferia sul de Lviv, um grupo de crianças correu imediatamente na sua direção. As crianças agarraram-se a Halyna como enfeites a uma árvore de Natal.
O pequeno orfanato abriga actualmente 30 crianças, que foram evacuadas das regiões mais ameaçadas da Ucrânia. Nem todas estavam sem pais, uma particularidade do sistema de orfanatos estatal ucraniano. Antes do início da guerra, este sistema oferecia abrigo a 105 mil crianças, aproximadamente 1% da população infantil da Ucrânia – a maior taxa de institucionalização na Europa.
Antes da invasão russa, uma média de 250 novas crianças entravam no sistema diariamente. De acordo com a UNICEF, cerca de metade de todas as crianças nos orfanatos da Ucrânia antes da guerra eram deficientes.
Nem todos eram órfãos “clássicos”. Os chamados “órfãos sociais” também estavam massivamente representados. De acordo com a lei ucraniana, as crianças podem ser retiradas de pais com dependências crónicas ou antecedentes criminais, ou de pais cujos filhos não recebem educação adequada. A principal razão para as crianças serem enviadas para lá era a pobreza.
Em 2021, a Ucrânia tinha cerca de 750 orfanatos, empregando 68 mil pessoas.
Após o início da guerra, o sistema de orfanatos do país foi lançado no caos. Algumas das instituições enfrentaram uma grave escassez de pessoal. Dezenas de orfanatos das regiões leste e sul foram realocados em áreas mais seguras. Muitas crianças ficaram presas nos territórios ocupados pela Rússia. Segundo a UNICEF, o exército invasor deportou cerca de 26 mil crianças ucranianas para o território russo ou para a Crimeia ocupada.
Diana, uma menina de 10 anos, foi evacuada do leste da Ucrânia. Junto com seus dois irmãos mais novos, foi levada para Lviv, onde o trio acabou separado. Sem os irmãos, Diana não consegue parar de chorar. A sua mãe alcoólatra não prestava os devidos cuidados a nenhum dos seus três filhos, e o pai simplesmente desapareceu. Mesmo assim, Diana ainda espera que a sua mãe possa um dia aparecer para a reivindicar.
“Essas crianças são as que mais sofrem, dada a forma como estão a construir falsas esperanças”, disse Andrii Mudrak, 24 anos, psicólogo que trabalha com crianças traumatizadas em Lviv.
“A chave é ajudar a acalmar e estabilizar as crianças novas que ficam sob a nossa custódia”, explicou Mudrak. “A maior parte chega aqui em mau estado. Na maioria, chegam traumatizadas. Para uma criança, cada mudança pode ser uma grande tragédia. De vez em quando, uma das crianças escapa. Mas o problema é que estas crianças não têm para onde fugir!”
Mudrak foi trazido para o orfanato de Lviv, severamente subdotado de pessoal e subfinanciado, com a ajuda de uma instituição de caridade local. “A maior parte do meu tempo é gasto a lidar com as consequências causadas por abusos e/ ou perdas profundas”, relatou o futuro psicoterapeuta. “Todas estas crianças precisam desesperadamente de amor e atenção.”
Num dos quartos do orfanato, Andrii Mudrak e as crianças que acompanha viam um filme. No dormitório, um grupo de meninas disputava agressivamente a atenção dos visitantes. Um menino estava a perseguir um cão velho malhado pelo corredor. As paredes das salas sufocantes estavam cobertas de rabiscos e desenhos. Assim como em outros lugares da Ucrânia, o orfanato foi muito afectado, em termos de electricidade e de aquecimento, dados os constantes ataques russos à infraestrutura energética.
“Em 1991, após a dissolução da União Soviética, a Ucrânia tinha um milhão de crianças a viver nas ruas. A maioria deles tinha sido abandonada pelos pais alcoólicos e desempregados. As crianças tiveram de recorrer à mendicidade. Alguns viviam nos sistemas de esgotos. As autoridades decidiram abrir várias centenas de instituições como a nossa”, diz Helena Malenchuk, vice-diretora do Abrigo para Crianças de Lviv.
Malenchuk continuou, explicando como, no último ano, as condições nos orfanatos ucranianos se deterioraram gravemente. Parte do motivo deveu-se ao facto de, no segundo dia da guerra, as autoridades terem optado por suspender todas as adopções.
“Não havia outra escolha. Era a única forma realista de limitar as manipulações possíveis e proteger as crianças. Hoje em dia, muito mais crianças são colocadas em lares adoptivos”, explicou Halyna Bodnaruk, que lidera a instituição de caridade Small Wins.
Há 37 anos que Miroslava Lipitska gere um internato para crianças com necessidades especiais no centro de Lviv. A escola, NRC Oberig, também funciona como um orfanato – ainda mais durante o ano passado, quando a situação forçou as autoridades a misturar ainda mais as crianças deficientes com os órfãos. Dada a escassez crónica de pessoal, os cuidados recebidos pelas crianças estão a tornar-se cada vez menos frequentes.
“Estamos a fazer tudo o que podemos. Estamos realmente a lutar por estas crianças. Precisamos perceber que aqui, na instituição, estamos a ter uma vida muito mais fácil do que as pessoas nos campos de batalha”, comentou Lipitska no antigo palácio aristocrático, agora cedendo lentamente sobre si mesmo.
Actualmente, 113 crianças estão alojadas no orfanato escolar, que parece um portal para os tempos do império austro-húngaro. Alguns dos residentes são permanentes, alguns estão apenas temporariamente aqui. Muitos deles vieram das regiões de Donetsk e Lugansk. Os voluntários estão a ir buscá-los às ruas e à estação ferroviária local. Algumas das crianças tinham perdido o pai para a linha da frente sem nunca terem conhecido as mães.
Entre os últimos a chegarem estavam Max, da cidade ocupada de Melitopol, e um menino sombrio com uniforme militar, vindo da cidade de Pokrovskyi, na região de Donetsk, localizada bem ao lado da linha de frente. No dia da nossa visita, Lviv estava sob alarme aéreo constante. O menino sombrio desceu, correndo as escadas para garantir de que estava seguro.
“Quero ir para casa”, exclamou Karina, de 18 anos, enquanto fazia os trabalhos de Matemática. Em Março passado, foi evacuada da cidade de Enerhodar, na região de Zaporizhzhia, localizada nas imediações da maior central nuclear da Europa. Após meses de intensos combates, a cidade é agora controlada pelas forças russas.
Karina sofre de várias deficiências. Logo depois de nascer, a sua mãe alcoólatra deixou-a no orfanato. No entanto, a doce menina logo se acostumou à sua nova situação. De vez em quando, ela até era visitada por parentes. Tinha o seu próprio pequeno mundo. Mas, praticamente da noite para o dia, a guerra até isso lhe tirou.
Agora, está visivelmente a sofrer no orfanato de Lviv. A adolescente abandonada tem muitas saudades do seu antigo orfanato. Os seus cuidadores disseram-nos que ela estava o tempo todo a ligar para os seus parentes, pedindo que a viessem buscar.
Mas, neste momento, as suas esperanças têm precisamente zero de probabilidade de se tornarem uma realidade…
N.D. Caso deseje ajudar os órfãos na Ucrânia, pode fazê-lo efectuando o seu donativo para a organização Small Wins Charity Foundation.