Recensão: o acontecimento

A fazedora de anjos

por Maria Carneiro // Março 5, 2023


Categoria: Cultura

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Título

O acontecimento

Autor 

ANNIE ERNAUX (tradução: Maria Etelvina Santos)

Editora (Edição)

Livros do Brasil (Dezembro de 2022)

Cotação

18/20

Recensão

Uma das características marcantes da obra da escritora francesa Annie Ernaux, Nobel da Literatura do ano passado, é a invenção de uma forma narrativa muito própria.

Os seus livros não são romances, nem ensaios, nem autobiografias, nem romances históricos, mas um pouco disso tudo em estilo e voz própria muito originais.

Este O acontecimento, narrado na primeira pessoa, conta-nos a história de um aborto clandestino levado a cabo, pela autora, quando tinha 23 anos e era estudante universitária. O facto passou-se em 1963, doze anos antes da descriminalização do aborto promulgada em 1975, com a Lei Simone Veil.

Grávida, envolvida numa relação fortuita e sem importância, fica desesperada e angustiada perante o dilema: por um lado a convicção que a sua única solução é um aborto, pois não quer nem está preparada para ser mãe, por outro, a certeza que o aborto, à data, era ilegal e muito perigoso.

Num livro que embora só tenha oitenta e sete páginas e seja fácil de ler mas muito difícil de digerir, acompanhamos a sua jornada, em busca de uma forma de abortar. A autora vai trazendo à tona recordações da sua juventude recorrendo a uma agenda ou excertos de diários. Há vários exemplos de entradas desses registos. Por exemplo, quando a acompanhamos na procura por um médico que lhe faça o aborto com passagem por vários consultórios, ou na pesquisa de alguém que conhecesse alguém que tivesse o contacto de uma “fazedora de anjos” ou no confronto quotidiano com a proibição da lei.

Ao mesmo tempo que tem conhecimento de que está grávida, o presidente Kennedy morre assassinado: “Mas isso já não me despertava nenhum interesse”, escreve ela numa das muitas entradas. O próprio curso universitário entra em uma espécie de hiato, o tema da monografia em que estava a trabalhar parece perder toda a sua importância. “Não escrevo mais. Não estudo mais. Como sair daqui?”. Essa espécie de alienação da realidade vai-se aprofundando com o passar do tempo, na procura de uma saída.

Como disse Ernaux numa entrevista, o que escreve é simples e substantivo como os títulos dos seus livros, mas muito sofrido: em vez de uma caneta, uma faca. Ao perscrutar a memória e escrevendo sobre si vê-se a rasgar a própria carne e a revelar um sentimento atroz de um sofrimento solitário. Nunca disse aos pais que estava grávida e mesmo aos amigos não revelou o seu segredo. Fê-lo com mais à vontade a quase desconhecidos ou a pessoas que ela julgava poderem ajudá-la.

O texto é cru, directo e, por vezes, brutal. Descreve um passado assombrado pelo medo e pela dor emocional e física. “O tempo tornou-se uma coisa sem forma que avançava dentro de mim e era preciso destruir a todo custo”.

Narra detalhadamente o seu encontro com a “fazedora de anjos”, a vulnerabilidade e a vergonha que sentiu no processo e o seu período na urgência de um hospital após o acontecimento. Ali, expõe a violência médica e o julgamento moral de que foi vítima por ter tomado aquela decisão. Antes disso passou por um médico que tentou dissuadi-la da decisão chegando mesmo a receitar-lhe um medicamento que ela descobre, depois, ser antiabortivo e não, como julgava, um que lhe provocasse o aborto.

Na própria comunidade universitária onde vivia, Annie é confrontada com um pensamento conservador a respeito do aborto e da sua legalidade e sofre o peso da censura velada que lhe mostrada até por pessoas que ela julgava que a compreenderiam.

É um livro que nos deixa a pensar e que demonstra que, de facto, o Nobel foi justíssimo, e a obra desta autora merece muito ser lida.

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