PÁGINA UM apresenta intimação contra Resolução do Conselho de Ministros

“Inquéritos secretos” aos novos governantes são mesmo secretos? Tribunal Administrativo decidirá

por Pedro Almeida Vieira // Março 8, 2023


Categoria: Exame

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Em Janeiro, depois de vários escândalos políticos, o primeiro-ministro António Costa quis mostrar publicamente que não aceitaria nenhum governante com problemas na Justiça, mas a Resolução do Conselho de Ministros que instituiu um inquérito prévio aos candidatos a membros do Governo coloca uma “cortina de obscurantismo” sobre todo o processo, porque coloca um selo de “secreto”. Mas há um problema: a classificação de “Secreto Nacional”, escolhido pelo primeiro-ministro, para impedir o acesso público não se encaixa nos pressupostos exigidos por lei. E introduz, além disso, a possibilidade futura de o Governo começar a classificar a eito, como secretos, assuntos politicamente sensíveis por simples reuniões de ministros. O PÁGINA UM tomou a decisão de apresentar uma intimação no Tribunal Administrativo de Lisboa, após a recusa tácita da Presidência do Conselho de Ministros em ceder o inquérito preenchido no mês passado pelo novo secretário de Estado da Agricultura Caleia Rodrigues. Este é o 16º processo de intimação – uma ferramenta fundamental à liberdade de informação e à defesa da democracia – que o PÁGINA UM apresenta, desde Abril do ano passado, no Tribunal Administrativo de Lisboa, através do seu FUNDO JURÍDICO, com o apoio exclusivo dos seus leitores.


O Tribunal Administrativo de Lisboa vai decidir, nas próximas semanas, um processo de intimação interposto pelo PÁGINA UM para se saber se os questionários prévios à integração de novos membros no Governo são ou não susceptíveis de consulta pública. A Presidência do Conselho de Ministros foi já hoje notificada para apresentar defesa no prazo de 10 dias.

Em concreto, está em causa o pedido de consulta requerido pelo PÁGINA UM ao inquérito já preenchido pelo único governante que entrou em funções desde a Resolução do Conselho de Ministros de 13 de Janeiro: o novo secretário de Estado da Agricultura, Gonçalo Caleia Rodrigues, que tomou posse há menos de um mês, em 15 de Fevereiro.

António Costa cumprimentando Gonçalo Caleia Rodrigues na tomada de posse. O secretário de Estado da Agricultura foi o primeiro, e até agora único, governante a preencher um inquérito que o primeiro-ministro quer secreto, apesar da Resolução do Conselho de Ministros invocar a transparência.

Logo no dia seguinte, em 16 de Fevereiro, o PÁGINA UM requereu ao primeiro-ministro António Costa um pedido de acesso a esse inquérito prévio, expurgado de eventuais dados nominativos, e não tendo havido resposta em 10 dias úteis, entrou ontem com um processo de intimação.

Recorde-se que a Resolução do Conselho de Ministros elenca um conjunto de 36 perguntas, incluindo algumas que já são alvo de escrutínio pelo Tribunal Constitucional, mas especificando outras com aspectos politicamente sensíveis, designadamente a ocorrência de processos judiciais ou contraordenacionais, ou de insolvência, e também o passado empresarial ou de ligações familiares com áreas a tutelar.

Em todo o caso, saliente-se que, apesar do melindre das questões, exceptuando endereços, as respostas ao inquérito não configuram matérias secretas ou pessoais. Por exemplo, se uma empresa detida por um candidato a governante tiver ficado insolvente, ou se a mulher de um secretário de Estado for sócio de uma empresa, essa informação consta em documentos públicos, embora necessitando de pesquisas nem sempre fáceis. O passado criminal (ou mesmo de simples arguido) acaba também por não ser matéria propriamente secreta.

Governo já foi notificado para responder à intimação do PÁGINA UM no Tribunal Administrativo de Lisboa.

Apesar da Resolução do Conselho de Ministros – que surgiu depois de várias demissões no seio do Governo – ter instituído um inquérito prévio como “ferramenta de avaliação política”, de modo a “realça[r] a importância de assegurar a transparência e o controlo da integridade do sistema democrático”, António Costa tratou, porém, de tornar todo o processo secreto e obscuro.

Com efeito, o diploma em causa – uma simples Resolução de Conselho de Ministros – estipula que “uma vez preenchido, o questionário [preenchido pelos candidatos a membros do Governo] tem a classificação de Nacional Secreto”, e que haverá lugar à sua destruição “caso a personalidade que o preencheu não seja nomeado membro do Governo ou no momento em que cesse funções.”

A classificação especial de documentos administrativos – que são todos aqueles que caem na esfera da Administração Pública – carece, na maioria dos casos, de leis da Assembleia da República, além de que a restrição de acesso a estes inquéritos, colocando-os como “Nacional Secreto”, se mostra completamente abusiva, porque os equipara a “segredo de Estado”.

Ora, de acordo com a Lei Orgânica nº 2/2014, o regime do segredo de Estado abrange somente “os documentos e as informações cujo conhecimento por pessoas não autorizadas é suscetível de pôr em risco interesses fundamentais do Estado”, sendo que esses se encontram explicitamente explanados, a saber: “interesses fundamentais do Estado os relativos à independência nacional, à unidade e à integridade do Estado ou à sua segurança interna ou externa, à preservação das instituições constitucionais, bem como os recursos afetos à defesa e à diplomacia, à salvaguarda da população em território nacional, à preservação e segurança dos recursos económicos e energéticos estratégicos e à preservação do potencial científico nacional.”

Na mesma linha seguem também até as instruções para a segurança nacional, a salvaguarda e a defesa das matérias classificadas, designadamente as credenciações do Gabinete Nacional de Segurança, onde melhor se explicita que a classificação de Nacional Secreto abrange apenas “as informações, documentos e materiais cuja divulgação ou conhecimento por pessoas não autorizadas possa ter consequências graves para a Nação ou nações aliadas ou para qualquer organização de que Portugal faça parte”.

Em concreto, diz-se que essa classificação de Nacional Secreto – que implica fortes restrições de acesso – só se verificam se fizerem “perigar a concretização de empreendimentos importantes para a Nação ou nações aliadas ou para organizações de que Portugal faça parte”, ou ainda se “comprometerem a segurança de planos civis e militares e de melhoramentos científicos ou técnicos de importância para o País ou seus aliados ou para organizações de que Portugal faça parte”, ou ainda se “revelarem procedimentos em curso relacionados com assuntos civis e militares de alta importância.”

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O preâmbulo da Resolução do Conselho de Ministros diz, logo na primeira frase que ” O Programa do XXIII Governo Constitucional realça a importância de assegurar a transparência e o controlo da integridade do sistema democrático”, acrescentando depois que “tal aconselha que o escrutínio a que aqueles titulares devem ser sujeitos para integrarem o Governo, no âmbito do processo de avaliação política que precede a respetiva nomeação, seja reforçado.” Mas classifica o inquérito como “Nacional Secreto” sem enquadramento legal.

Em suma, a menos que o Governo consiga convencer as instâncias judiciais de que o conhecimento público do inquérito preenchido pelo secretário de Estado Gonçalo Caleia Rodrigues faça perigar “interesses fundamentais do Estado”, designadamente a própria independência de Portugal ou de outros Estados, não parece que o conhecimento do conteúdo das respostas ao inquérito preenchido por Gonçalo Caleia Rodrigues – que era professor do Instituto Superior de Agronomia antes de entrar em funções governativas – possa vir a ter tamanhas consequências, atendível o teor das questões e informações aí expostas.

Além disto, a Resolução do Conselho de Ministros – que, repita-se, invoca o reforço da transparência e o controlo da integridade do sistema democrático – introduz um risco no regime: a possibilidade de uma classificação de documentos administrativos, incluindo a sua destruição, poder ser feita de forma completamente arbitrária e casuística por um Governo.

Ou seja, se diplomas desta natureza vingarem, como forma expedita de governar, um qualquer Governo pode passar a classificar qualquer decisão, plano, projecto ou até mesmo empreitada como “Nacional Secreto”. E, a partir daí, o público, em geral, e os jornalistas, em particular, ficam impedidos de aceder a informação relevante ou politicamente sensível. No limite, podem “decretar” a destruição de todos os documentos quando saírem de funções.


N.D. Todos os encargos do PÁGINA UM nos processos administrativos, incluindo taxas de justiça e honorários de advogado, têm sido suportados pelos leitores e apoiantes, através do FUNDO JURÍDICO. Neste momento, por força de 16 processos de intimação intentados desde Abril do ano passado, além de outras diligências, o PÁGINA UM faz um apelo para um reforço destes apoios fundamentais para a defesa da democracia e de um jornalismo independente. Recorde-se que o PÁGINA UM não tem publicidade nem parcerias comerciais, garantindo assim a máxima independência, mas colocando também restrições financeiras.

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