Há seis anos, se a memória não me falha, sentei-me com o último chefe directo que tive para negociar o aumento anual de salário. Passavam dois anos desde que ele, algures em 2016, me começara a avisar que já não havia “margem” para mexer em salários e que eu teria, por essa altura, atingido o topo.
Era, portanto, esperado que eu, aos 39 anos, concordasse em ficar com o mesmo salário, quiçá, até aos 65, idade em que me reformaria.
Expliquei-lhe, ainda de forma educada nessa reunião, que a “margem” esgotada a que ele se referia era aquela em que ele, a empresa, tinham como modelo de negócio ficar com 35 a 50% do valor gerado por mim.
Ou seja, a conversa dele começava no lucro garantido de 35% e a partir daí, logo se via quanto mais é que poderia raspar-me da pele. A mim e a outros em idêntica situação.
A negociação terminou com a exigência, por parte do empregador, de não abdicar do lucro mínimo de 35% e eu, que achava que eles nem faziam o suficiente para receberem 5%, decidi vir-me embora e começar a trabalhar por conta própria. Ou a decidir a quem e de que forma dava margens no valor produzido única e exclusivamente por mim.
O empregador não ficou contente e, mais tarde, ameaçou-me com um processo em tribunal, que nunca teve pernas para andar. Isto porque, felizmente, a escravatura há muito foi erradicada destas paragens.
Ficou-me dessa experiência a ganância desmedida com que se procura o lucro, independentemente de quem trabalha ou de quem merece ser compensado.
Tenho dito a cada português que aqui chega (Suécia), em busca de uma vida melhor, que nunca se vergue na defesa dos seus direitos laborais e que, especialmente, nunca tenha medo de vender a sua força de trabalho pelo preço justo.
Para quem vive do seu trabalho não há outra arma contra quem vive do lucro gerado por todos nós. A divisão de riqueza gerada tem que ser justa e, quando não for, a classe trabalhadora deve estar unida.
Esta conversa das margens veio-me à cabeça quando ouvi as N entrevistas aos presidentes de associações de retalho que foram chamados às televisões para tentarem justificar o injustificável: as enormes margens de lucro com a inflação.
Entre eles estava Rodrigo Moita de Deus, conhecido lobbysta e presidente da Associação de Portuguesa de Centros Comerciais, que procurava validar o escândalo que semanalmente vemos nos supermercados com o aumento dos custos na cadeia de produção.
A direita mais liberal não o diz abertamente, porque fica mal, mas apoiam o lucro infinito porque “as empresas existem para dar lucro”. Que me lembre, só Cecília Meireles, já sem funções parlamentares e num debate com Mariana Mortágua na SIC Notícias disse, a propósito dos lucros excessivos da banca que “desconheço o conceito de lucro excessivo”.
É o mesmo que dizer que, enquanto se puder aumentar o lucro, importa pouco quando cadáveres se vão amontoando para que os conselhos de administração se elevem nas ossadas.
Cecília, cujo partido desapareceu, já pode dizer isto abertamente, os restantes actores da direita ainda precisam de fingir que se preocupam com a miséria que vai abraçando os portugueses.
Toda esta defesa do lucro a todo o custo como conceito e, pior, a patética tentativa de ensaiar uma narrativa de aumento generalizado na cadeia de produção, para justificar aumentos de 70% em produtos do cabaz essencial, honestamente, dão-me vómitos.
Por acaso, os trabalhadores dessa cadeia de produção foram aumentados em igual proporção? Alguém ouviu falar em aumentos de 30% para os operadores de caixa do Pingo Doce ou 70% para os funcionários da Terra Nostra, que produzem o queijo e o leite nos Açores? Não, pois não?
Então acabem com essa conversa do aumento dos custos de produção como se não fosse uma coisa localizada em partes dessa cadeia.
Mas os custos de produção não aumentaram? Sim, claro que aumentaram. As rações para os animais subiram de preço com a guerra da Ucrânia. Os combustíveis também e, obviamente, o transporte de mercadorias ficou mais dispendioso.
Mas não seria de esperar que esses aumentos fossem divididos (para ser simpático) entre quem produz, quem distribui e quem compra? Seria pedir muito que os supermercados reduzissem um pouco as suas margens ou vá, que as mantivessem, para que a bomba não caísse toda nas mãos dos consumidores que empobrecem a cada dia?
Não aguento mais um dia de “passa culpas” ou de tentativas de convencimento da população por parte dos líderes das associações ou CEOs da distribuição. Se as margens de lucro aumentam com a inflação, é porque o impacto é todo absorvido por nós. Por quem trabalha. Ponto final.
Se não há aumentos salariais reais (acima da inflação) e se bancos e supermercados apresentam lucros recorde enquanto todos empobrecem, é porque as margens aumentaram e as grandes corporações se aproveitaram da inflação para especular. Ponto final. É isto o lucro excessivo. O momento em que, com a permissão dos governos, há uma transferência direta de dinheiro dos trabalhadores para o capital. É um assalto em termos legais. É isso que estamos a viver.
O escândalo é de tal forma descarado que dou por mim, aqui na Suécia, a comprar produtos que chegam num camião TIR de Espanha quase ao mesmo preço que o compraria numa grande superfície em Portugal. Mesmo com 3000 quilómetros de gasóleo e operadoras de caixa que recebem três vezes mais do que em Portugal, o aumento não é todo absorvido pelo cliente final. É obra.
O Governo, tarde como é habitual, pondera limitar os preços em alguns produtos essenciais. Aqui d’el Rei que se juntam as vozes a gritar pela nova Venezuela e aparece logo um par de economistas a explicar que isso fará alguns produtos desaparecerem do mercado por troca com outro paralelo e de preços mais altos, por causa da redução da oferta.
Como meus amigos? Como? Vão os produtores deixar de vender bens essenciais? E vivem de quê? O Continente e o Pingo Doce não aceitarão? Óptimo. Voltemos aos mercados e aos pequeno produtores com pequeníssimas cadeias de distribuição. Produtos locais, comércio de proximidade, preços mais baixos, maior divisão de riqueza.
Qual é o problema? É que se acaba o “lucro excessivo” e isso incomoda a quem manda.
Dizia hoje um pequeno produtor, no mercado de Espinho, que os preços não eram altos porque precisavam de vender e que esta era a forma de concorrer com as grandes superfícies. Explicou também que o segredo para ter produtos tão bons (os legumes apresentados tinham tamanho avantajado) e frescos era, para além de ele próprio os cultivar, o uso de estrume de gado bovino como fertilizante.
Ora aí está. Estrume de gado bovino pode ser, afinal, solução de boa parte dos nossos males. Ou de vaca, dito de forma mais corriqueira. Primeiro na terra, para gerar belos legumes e depois, aplicado com alguma mestria, na cara de quem nos obriga a empobrecer para aumentar as fortunas de uma minoria.
Tiago Franco é engenheiro de desenvolvimento na EcarX (Suécia)
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