Há uma boa dezena de anos, quando ia buscar o meu filho à creche, tinha por hábito estacionar no parque em frente, sem pagar, entrar no edifício e sair, quatro minutos depois, com ele pela mão. Esta rua ficava no meio de uns pastos, não tinha saída e o trânsito – se é que lhe podia chamar assim – limitava-se aos carros de pais que iam fazer o mesmo que eu.
Nunca vi ninguém a ir à máquina do parquímetro, até porque essa acção demorava mais a cada pai do que ir buscar o respectivo descendente. Certo dia, quando chego ao carro, vejo uma multa afixada.
Liguei para a EMEL local e uma senhora, extremamente antipática, dizia-me: “aqui na Suécia nós cumprimos as regras”. Na altura, eu não falava sueco, e obviamente percebia-se que era emigrante. A senhora descascou-me de alto a baixo, deu-me uma lição sobre regras de conduta no Primeiro Mundo. Afirmou até, sem sair da sua cadeira, que todos os pais pagavam o estacionamento quando iam buscar as crianças, menos eu.
Informou-me até que ela, mesmo sem ter filhos, pagava os impostos todos para que “nós” (os mais escuros) pudéssemos ter creches grátis para os nossos filhos.
Desliguei o telefone pensando que era um selvagem e questionando-me se, de facto, alguém pagava estacionamento por três ou quatro minutos, algo que eu nunca tinha visto nos indígenas que chegavam à creche à mesma hora do que eu.
No dia seguinte voltei ao local do crime com um bloco de notas. Sentei-me e esperei. Contei o número de pais que lá apareceram, os carros que tinham, o tempo que demoraram e quantos tinham pagado o parqueamento.
Numa hora inteira que lá estive aquele parquímetro viu cerca de zero coroas, num universo de 50 pais. Escrevi um e-mail ao chefe da senhora – a tal que simpaticamente me tinha informado que eu era um selvagem –, explicando o tratamento ligeiramente racista a que tinha sido sujeito por uma funcionária que pagava impostos para creches sem as usar.
Disse-lhe também que tinha visto 50 louros bem selvagens, e que, pelo que me tinha apercebido, ninguém demorava três minutos a ir meter moedas para ficar estacionado outros três minutos.
O chefe da senhora escreveu-me a pedir desculpa em nome do departamento, retirou a multa e, em seguida, colocou uma placa em frente à creche a informar que o estacionamento era grátis durante 15 minutos.
Ainda hoje vi a placa, e lembrei-me da frase do meu camarada Luís Gomes, tão gasta e repetida, de que a TAP é sustentada por pessoas que nem voam nela.
“Hiiiii…. que grande volta foste dar para responder ao discurso liberal que te foi dedicado, por uma pessoa que não gosta da IL, mas fala como eles”.
Pois é, meus amigos. Eu não gosto de colocar a mesa de jantar sem compor a decoração: há que criar ambiente para trinchar o peru.
O argumento de “paga quem usa” é o típico de quem defende uma sociedade não solidária. Eu nunca fui operado na vida e julgo que, em idade adulta, entrei num hospital três vezes para meter gesso num braço, ou um ombro no sítio, depois de umas futeboladas.
Devo então pagar impostos para o SNS quando há gajos que passam lá a vida?
Sim, claro que devo. Pela mesma razão que devemos pagar impostos progressivos, para que os que mais recebem possam contribuir para os que menos têm.
É esse o princípio básico de uma sociedade justa e solidária, com a qual me identifico. O contrário disto é o caos do salve-se quem puder, sem rede social que ampare as quedas. Nem todos podemos ser um CEO por mais que tentemos. Alguém tem de limpar as ruas ou fazer o pão e, nem por isso, têm de estar condenados a uma vida de miséria.
Tal como o Luís, eu já trabalhei por conta de outrem e por conta própria. Neste momento, faço as duas variantes, uma espécie de pau para toda a obra, dividido por quatro empregos. Ainda assim, a minha actividade não me tolda a visão do que acredito ser uma sociedade justa, com menos degraus e intervalos mais pequenos entre as classes sociais.
Isso só é possível se todos pagarmos para o bem comum. Algo que aprendi na Escandinávia, com impostos elevadíssimos e um retorno óbvio e de qualidade em serviços públicos.
Quando muito, poderia o Luís discutir, se quisesse, era se a TAP tinha interesse público para fazer parte das despesas feitas com dinheiro dos impostos. Essa discussão ainda aceito – a de que muitos que a pagam não a usam, mas enfim, parece-me mais limitada.
A minha avó nunca entrou num avião da TAP, mas fica radiante de cada vez que um TAP me leva até ela. Quantas Bias – nome utilizado por Maria Francisca Franco –, ainda aos 95 anos, espalhadas por Portugal, não terão um Tiago para ver algures numa das várias comunidades portuguesas ligadas pelas pontes da TAP?
Mas, segue o Luís, na tentativa de me responder, com o embrulho de sortidos húngaros na esperança de que, dali, saiam pastéis de nata. [Sou um fã dessa iguaria, devo confessar]. Pensei que já ninguém usasse o argumento de “a TAP não serve o Porto e Faro”, mas enganei-me. Ainda há quem use um não-assunto para tentar arranjar mais um motivo para o seu encerramento.
A TAP “não serve o Porto e Faro” como a KLM não serve Roterdão, a Ibéria não serve Barcelona e a Lufthansa Hamburgo. Ou a Austrian não serve Salzburgo e a Air France, Marselha. Ou a Brussels não serve Antuérpia e a SAS Gotemburgo.
Posso continuar por mais cinco linhas, mas acho que a ideia já passou. As companhias têm um hub (normalmente as capitais, sendo a Lufthansa um caso especial) e, portanto, fazem pontes para as restantes cidades. Mas, como se percebe, é a partir do hub que organizam maior parte das saídas. Não é a TAP que faz isto, é a aviação, em geral. Ninguém inventou a roda na Portela.
Pior do que a conversa de Porto e Faro é a repetição de outro mito já desmentido pelos quatro cantos do Mundo: o de a TAP receber dinheiro “há décadas”. Ora, devo lembrar que tal prática era proibida pela União Europeia e companhia alguma, de bandeira, podia receber financiamento público. Que me lembre, a excepção à regra aconteceu durante a pandemia da covid-19 e, nessa altura, várias companhias foram ajudadas pelos Estados com a autorização comunitária.
Assim, de cabeça, lembro-me da Lufthansa, da SAS, da Iberia, da TAP e da Air France. Esses dois anos terríveis, em que o poder político decidiu arruinar o sector dos transportes, foi culpa da TAP? O défice acumulado nessa altura é culpa dos trabalhadores da TAP? Não me parece.
Por que razão devem eles agora pagar a factura? É esse o busílis da questão, que, no diagnóstico feito pelo Luís, não vi qualquer resposta. O que fazer com os mais de sete mil trabalhadores e todos os empregos indirectos que estão nos fornecedores? No fundo, o que fazer com o peso da TAP na nossa Economia?
A outra altura em que a TAP recebeu dinheiro público, antes da nacionalização tão criticada, foi quando o Governo de Passos Coelho pagou a um empresário para que a companhia aérea nacional fosse comprada. É mais uma daquelas histórias de homens de negócios que arriscam com o dinheiro alheio. Em termos matemáticos, o risco assumido pelos privados que compraram a TAP foi ali a rondar o elemento absorvente da multiplicação: zero.
Há uma parte em que concordamos, até porque a vida não é assim tão complicada: o Estado português vai ao bolso dos contribuintes com elevado requinte de malvadez.
Pessoalmente, não é tanto o valor que me choca, é mais o serviço que nos é devolvido. Para aquilo que são os serviços públicos, hoje em dia, acho que não valia a pena continuarmos a pagar impostos (quase) ao nível da Escandinávia.
Mas noto que enquanto o Luís faz as contas, e bem, ao que o sr. João do Táxi ou a sra. Joana do Cabeleireiro pagam, já se esquece da calculadora na altura de referir os salários dos trabalhadores da TAP. Repare-se: se os salários são mais elevados, significa que também pagam mais impostos para o sr. João do Táxi. E ainda bem. É assim que funciona uma sociedade civilizada.
Nós, que não trabalhamos na TAP, nem conduzimos táxis, não devíamos criticar os salários da TAP, da NAV e de mais meia dúzia de sítios que pagam como no resto da Europa de Primeiro Mundo. Aquilo que devíamos, tal como os professores andam a fazer há meses, era exigir uma justa distribuição de riqueza e salários dignos. Não são os da TAP que estão mal, são os outros.
Mas falemos de alternativas, então, Luís. A TAP, na tua visão, devia ter sido extinta, presumo, antes de entregarem o primeiro cheque ao Neeleman. Garantes tu que, sem a TAP, caso o interesse em Portugal se mantenha, que haverá alguém que faça as ligações. Muito bem: o clássico mercado como solução para o desconhecido.
E se não houver interesse? Quem é que liga a diáspora ao país, especialmente nas rotas pouco lucrativas? Quem é que garante a ligação às regiões autónomas? E às ilhas mais pequenas? Quem é que liga com os PALOP, onde estão milhares de portugueses?
No fundo, quem é que faz a ponte com os cinco milhões de lusos e luso-descendentes espalhados pelo Mundo? Num país encostado no fundo da Europa, sem ferrovia e longe de tudo… a solução é depender do interesse alheio?
Fico incrédulo com as contas feitas dos salários que poderiam outros receber se a TAP não existisse. É um claro caso de indignação selectiva. Estivemos 13 anos a sustentar o BES e nunca vi ninguém a dizer quantos portugueses com o salário mínimo poderiam ser aumentados. Nunca vi uma linha da direita portuguesa a contestar as PPP ruinosas, electricidade em regime de monopólio proibitiva, portagens ou combustíveis. Aliás, até vi liberais no Parlamento – já sei que o Luís não gosta destes liberais, embora pareça muito – a defenderem o cartel das gasolineiras, pedindo menos impostos para eles. Quando o Governo baixou os impostos, as gasolineiras comeram as margens.
Ou seja, entre poder político e donos do capital, faz-se o banquete. À direita nada parece incomodar, e até a especulação nos supermercados já os vi defender. O lucro manda.
Mas ai de nós se defendemos uma companhia aérea num país periférico que, só por acaso, faz verdadeiro serviço público. Aí entramos no sorvedouro de dinheiro público e na raiz do atraso estrutural desde 1985.
No que toca a prioridades e dinheiro público atirado para a sarjeta, decididamente não estamos a assistir ao mesmo filme. Há um rio de poupanças a fazer e de desperdício para cortar, antes de se pensar na reestruturação da TAP. Que, já agora, será inevitável.
Dou um exemplo para ajudar: Ferreira do Amaral saiu esta semana da Lusoponte ao fim de 16 anos. O que teríamos poupado nesta dezena e meia de voltas ao sol se ele não tivesse assinado o contrato de exploração enquanto era ministro das Obras Públicas? Eu arrisco, para não me esticar muito: uns quinze A320. Em leasing.
Tiago Franco é engenheiro de desenvolvimento na EcarX (Suécia)
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