EDITORIAL

Jornalistas (muitos): os ferreiros sem espeto nem pau

Editorial

por Pedro Almeida Vieira // Março 17, 2023


Categoria: Opinião

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Ponto prévio: “O jornalista deve lutar contra as restrições no acesso às fontes de informação e as tentativas de limitar a liberdade de expressão e o direito de informar. É obrigação do jornalista divulgar as ofensas a estes direitos.” Esta é uma das normas do Código Deontológico dos Jornalistas. Posto isto, siga, e justifica-se, o editorial…

Imaginemos que, por exemplo, um jornalista do Expresso fazia um requerimento ao Governo a solicitar documentos ao abrigo da Lei do Acesso aos Documentos Administrativos, isto num cenário em que se via obrigado a invocar a lei para obter informação, porque não lhe bastaria um simples telefonema ou e-mail.

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Eu sei que é um exercício que exige demasiada imaginação: não tanto por mim – que colaborei vários anos no Expresso –, mas por ser difícil imaginar o Expresso (ou outro órgão de comunicação social mainstream) de hoje a “morder nas canelas” do Governo ao tal ponto de invocar leis para aceder a documentos…

Mas imaginemos então esse pedido, e que, na volta do correio, o jornalista do Expresso receberia a seguinte resposta:

Embora o Governo reconheça que tal informação nunca foi requerida e o número de documentos, não obstante ser morosa, não configure propriamente um impedimento, a verdade é que a finalidade do acesso aos documentos é, em si, manifestamente abusiva. E é assim porque o requerente tem vindo, ao longo do último ano, a mover sucessivos pedidos de acesso aos mais variados documentos na posse da Governo, acabando por fazer um uso abusivo dos mesmos quando a eles tem acesso, concretamente através da publicação no Expresso, aliada a outras tantas sobre o Governo e o seu Primeiro-Ministro.

O que acham que aconteceria? Como reagiria a classe jornalística? Como reagiria o Sindicato dos Jornalistas? Como reagiria a Entidade Reguladora para a Comunicação Social? Como reagiria a Comissão da Carteira Profissional de Jornalista?

Pagaria para ver.

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Porém, resposta similar obtive, não do Governo, mas, pasme-se, da Comissão da Carteira Profissional de Jornalista, que integra apenas jornalistas. E isto porque pedi formalmente diversos documentos, entre os quais actas de reuniões, diligências tomadas em sede de processos de averiguação e disciplinares a jornalistas e também a decisões quanto a remunerações dos nove membros do Plenário de uma entidade de direito público.

A resposta, esta semana transmitida, contém esta e outras “pérolas”:

“Embora o Secretariado reconheça que tal informação nunca foi requerida e o número de documentos, não obstante ser morosa, não configure propriamente um impedimento, a verdade é que a finalidade do acesso aos documentos é, em si, manifestamente abusiva. E é assim porque o requerente tem vindo, ao longo do último ano, a mover sucessivos pedidos de acesso aos mais variados documentos na posse da CCPJ, acabando por fazer um uso abusivo dos mesmos quando a eles tem acesso, concretamente através da publicação no “Página Um”, aliada a outras tantas sobre a CCPJ e a sua Presidente.

Convém referir que as minhas expectativas face a esta CCPJ estão já abaixo de zero, como se pode constatar pela cobertura noticiosa e opinativa que lhe temos dedicado no PÁGINA UM. A sua inacção em diversas matérias – como o fechar os olhos às relações promíscuas entre grupos de media e determinadas empresas é um exemplo –, já não tem cura. Mas convinha que não enterrassem a própria essência do jornalismo, abrindo uma caixa de Pandora perante a passividade da classe só porque se deparam, pela primeira vez, com um jornalista que não quer ser corporativista nem agradar à classe.

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Imaginar que se pode dar uma resposta daquele quilate a um jornalista – invocando uma norma legal, isto é, o ser “manifestamente abusivo”, porque acham os pedidos “chatos” – é dar em simultâneo “instruções” ao Governo, à Administração Pública, às empresas e a todas as entidades para tratarem, do mesmo modo, outros jornalistas.

Para a jornalista (credo!) Licínia Girão e para o jornalista (duplo credo, porque também ensina estudantes de Comunicação Social), que assinaram a carta a mim remetida, haver um jornalista a pedir, por exemplo, actas de reuniões e documentos de remuneração (numa altura em que a CCPJ pretendia aumentar as receitas através de uma subida dos emolumentos) é “manifestamente abusivo”. Presumo que já não seria se eu lhes cantasse loas.

Mas não me surpreendendo que a CCPJ (tal como em tempos a Entidade Reguladora para a Comunicação Social) tenha este tipo de atitudes pouco adultas (fazendo “birras”, porque os incomodam), também sei como as “coisas” funcionam em corporações – e sei muito bem o quão corporativista é a classe jornalística.

Por isso, não me espanta, embora lamente, que, por exemplo, as minhas tentativas de telefonemas e de mensagens para o presidente do Sindicato dos Jornalistas, Luís Simões, para lhe chamar a atenção para a gravidade da reposta da CCPJ, tenham ficado sem qualquer resposta. Ainda mais porque a resposta da CCPJ lhe seguiu por mensagem de correio electrónico. Compreendo o seu silêncio, dentro do contexto da classe.

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Afinal, por que carga de água o presidente do Sindicato dos Jornalistas teria de reagir ao PÁGINA UM, que é um “minúsculo” jornal e que ainda por cima só faz pedidos “manifestamente abusivos”? E logo pedidos manifestamente abusivos à Comissão da Carteira Profissional de Jornalista, onde pululam figuras tão gradas de uma imprensa onde todos se conhecem e se cruzam.

Na verdade, ignore-se um “minúsculo” jornal que, para recordar os assuntos que levámos até às últimas instâncias, também faz pedidos manifestamente abusivos ao Governo.

Pedidos manifestamente abusivos ao Conselho Superior da Magistratura.

Pedidos manifestamente abusivos ao Ministério da Saúde.

Pedidos manifestamente abusivos ao Infarmed.

Pedidos manifestamente abusivos à Ordem dos Médicos.

Pedidos manifestamente abusivos à Ordem dos Farmacêuticos.

Pedidos manifestamente abusivos à Direcção-Geral da Saúde.

Pedidos manifestamente abusivos ao Instituto Superior Técnico.

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Pedidos manifestamente abusivos ao Banco de Portugal

Pedidos manifestamente abusivos à Inspecção-Geral das Actividades em Saúde.

Pedidos manifestamente abusivos à Administração Central do Sistema de Saúde.

E tantos mais fará…

Por isso, e pedindo desculpas (enfim, sarcásticas) por não fazermos no PÁGINA UM um jornalismo fofinho, sem abusos, e muito menos manifestos – passem muito bem com o vosso conceito de “manifestamente abusivo”. O PÁGINA UM, lamento desiludir-vos, não vai fazer o jornalismo que a maioria de Vossas Excelências deseja: jornalismo domesticado, amorfo e que se banqueteia com o poder. No dia em que tal me suceder, deixarei de ser jornalista.


Nota final: A Comissão de Acesso aos Documentos Administrativos já se pronunciou esta semana sobre uma primeira recusa da CCPJ aos documentos solicitados pelo PÁGINA UM, dando-nos inteira razão. Abordaremos este assunto, com detalhe noticioso, na próxima semana.

O jornalismo independente DEPENDE dos leitores

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