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Alexandre, o grande de Camarate

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Lutou pela verdade de Camarate durante décadas. Faleceu sem ter conhecido todos os factos, mas foi a sua determinação que não deixou cair no esquecimento as circunstâncias da morte do primeiro-ministro Francisco Sá Carneiro em 1980. Uma homenagem a Alexandre Patrício Gouveia. Ouça também esta crónica no P1 PODCAST.


Chamava-se Alexandre, como o grande da antiguidade, e era irmão de António. Estou a falar de Alexandre Patrício Gouveia, irmão de António Patrício Gouveia, o chefe de gabinete do primeiro-ministro Francisco Sá Carneiro, que também foi uma das vítimas da queda do avião de Camarate.

Alexandre faleceu a 12 deste mês e não posso deixar de lhe prestar uma homenagem, pois não li ainda um texto jornalístico que lhe faça a devida justiça. Conheci-o pessoalmente e sei o esforço que ele fez para descobrir a verdade de Camarate. Aliás, posso ainda acrescentar que me sinto responsável por muito daquilo que ele ficou a conhecer.

Alexandre Patrício Gouveia

Lembro-me de ele ter sido o rosto das notícias das várias comissões de inquérito parlamentar, representando as famílias das vítimas. Sobretudo no ano de 1995, quando via pela televisão a luta que Alexandre fazia junto da justiça para não deixar o caso prescrever nos tribunais. Era a altura da frase “a verdade não prescreve”.

Cinco anos mais tarde, em 2000, já como jornalista do “Tal&Qual”, publiquei um primeiro artigo que mencionava a provável relação entre Camarate e um negócio de tráfico de armas para o Irão, durante a chamada crise dos reféns norte-americanos de Teerão. Essa relação consta do livro “O Crime de Camarate”, do advogado dos familiares das vítimas, Ricardo Sá Fernandes.

Mais tarde, em 2002, devido à minha investigação, esteve na Assembleia da República um norte-americano, Oswald Le Winter, que testemunhou ter participado em reuniões secretas, em Paris, antes de Camarate, onde se teria combinado o tráfico de armas entre os EUA e o Irão.

Sá Carneiro e o seu chefe de gabinete António Patrício Gouveia. Ambos morreram no atentado de Camarate em 5 de Dezembro de 1980.

Durante essa altura, pouco falei com Alexandre. Ele parecia mais interessado nas questões técnicas, em explicar como nenhuma das teses de acidente conseguia demonstrar, de forma plausível, a queda do avião. A sua luta era no sentido de provar que houvera mesmo uma bomba a bordo. Os meus contactos eram sobretudo com Augusto Cid e Ricardo Sá Fernandes.

Foi só em 2006, quando, então já como editor de Política da revista “Focus” e juntamente com o chefe de redacção, João Vasco Almeida, fiz uma entrevista a José Esteves, antigo segurança de Freitas do Amaral e o homem que muitos apontavam como o autor da bomba de Camarate. Quando a entrevista saiu, recebi um telefonema de Alexandre. Ele agora estava interessado em ir mais longe e queria saber mais sobre o provável móbil do atentado, o suposto negócio de tráfico de armas para o Irão.

Encontrei-me com ele na sua casa da Rua do Jasmim, ao Príncipe Real. Tivemos depois vários encontros no seu gabinete do El Corte Inglés. A minha investigação continuava e, em Novembro de 2012, quando lancei o meu livro “Camarate – Sá Carneiro e as Armas para o Irão”, apresentei-lhe Jim Hunt, sobrinho e biógrafo de Frank Sturgis, um dos assaltantes do edifício Watergate e que era apontado como um dos alegados operacionais do atentado que causara a morte do seu irmão.

O seu interesse nesta pista norte-americana crescia e isso ainda levou a que, graças a si, o Parlamento português ouvisse Jim Hunt e um investigador norte-americano, A. J. Weberman que, finalmente, levaram os deputados portugueses a pedirem, oficialmente, informações à CIA. Isso foi em 2015.

Esse pedido nunca recebeu qualquer resposta da parte daqueles serviços. Nem sequer para desmentir o alegado envolvimento de norte-americanos na morte do primeiro-ministro de Portugal.

Devido à ausência de resposta, Alexandre meteu mãos à obra e, coligindo de forma detalhada a informação que guardara ao longo dos últimos anos da investigação, lançou em 2020 a obra Os mandantes do atentado de Camarate: o envolvimento americano.

Em Agosto do ano passado ofereceu-me a segunda edição. Falámos do que ainda tínhamos para fazer para descobrir a verdade. Seria um “até breve” e não suspeitava que estivesse doente. Só me lembro dele a sorrir quando nos despedimos no seu gabinete junto ao Parque Eduardo VII.

Alexandre foi grande, enorme, na luta pela memória e pela verdade daquilo que levou à morte do seu irmão. Pelo caminho, foi processado por um primo, Francisco Pinto Balsemão, mas ganhou essa luta.

Quanto à luta de Camarate, acho que ele ainda continua a trabalhar nela lá, na eternidade, onde descansa agora e, quem sabe, nos dará um dia uma revelação.

Eu acredito que sim, Alexandre.

Obrigado por teres sido grande.

Frederico Duarte Carvalho é jornalista e escritor


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