VISTO DE FORA

Se não fosse a TAP, a dona Maria teria uma parede caiada

person holding camera lens

por Tiago Franco // Março 24, 2023


Categoria: Opinião

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O meu camarada Luís Gomes não ficou contente com a resposta ao artigo sobre a TAP, e resolveu voltar à carga. Desta vez, esgotados os argumentos sobre o debate inicial (privatizar ou não, era essa a discussão), resolveu alargar o espectro da conversa para as ideologias políticas pincelado com alguma filosofia da evolução dos povos. Pelo meio, ainda me brindou com os meus sonhos de poder que, até aqui, eu próprio desconhecia.

Não sei se o Luís aprecia futebol, e se estava lá no dia em que Carlos Queiróz substituiu o Paulo Torres e deixou a ala direita para o Paneira fazer miséria, naquela noite gloriosa dos 6-3. Um erro do qual Queiróz nunca recuperou, diga-se.

green tennis balls on tennis court

Ora, o meu companheiro de jornal fez algo parecido. Deixou o flanco aberto que agora, com a educação possível, tratarei de usar e abusar.

O Luís desiste de falar na TAP ao fim de um parágrafo sem responder às questões básicas da contenda. Importações e exportações. Empregos. Fornecedores nacionais. Rotas com a diáspora que ninguém quer. Era nesta piscina que devíamos nadar, e o Luís, como qualquer bom amante dos mercados, explicar-nos-ia como é que a coisa se fazia com as Ryanairs que chantageiam por subsídios dos Governos europeus.

Em vez disto, o Luís opta por encetar um papiro de discurso clássico “Paulo Portas do tempo das feiras”. O título é auto-explicativo, mas eu dou uma achega. Quando Paulo Portas sonhava ser qualquer coisa mais do que o presidente de um partido de betos anafados (julgo que “anafado” ainda se pode dizer sem ofender todEs), corria todas as feiras do país com um boné de pastor. Por lá, entre peixeiras e as sessões da Assembleia da República, gritava aos microfones que o dinheiro público mal gasto em sítio X seria magnificamente aplicado no sítio Y.

Normalmente o sítio X era um elefante branco qualquer e Y, quase sempre, uma velhinha chamada D. Maria que precisava de ajuda para caiar umas paredes e substituir umas telhas para não dormir com pingos na testa.

white, red, and green airliner

Gosto muito da palavra “caiar”, desde que o meu bisavô, o primeiro empreendedor da família, fazia esse pó branco menos lucrativo do que o outro e alimentava a minha avó com as receitas da labuta. Eu não estava lá, mas contaram-me.

O Luís ao sacar de um “clássico Portas” nos seus tempos da lavoura (que saudades desses concertos de pandeireta no Bolhão), cai obviamente na mesma esparrela. Depois de convencer meio-mundo que ele, o Portas mais fraquinho, gostava de contas certinhas, chegou ao Governo e foi o que se viu. Alô Tridente….estás à escuta? De repente, as donas Marias esvaneceram-se nas brumas das sardinhas bem fresquinhas, e o Paulo, o amigo Paulo, desatou a comprar submarinos e a tirar fotocópias em barda.

O X do Luís é a TAP e o Y as empresas e os empresários onde ele, como se compreende, está incluído. Portanto, estamos aqui numa embirração que nos leva a concluir que, sem a TAP, o Luís poderia ter mais alguns benefícios fiscais. Compreendo, pois, que esteja contra este aborrecimento de se tentar salvar uma das companhias que mais cria riqueza em Portugal. Mas isto ainda piora, Luís. Mesmo que a TAP não existisse e usássemos todos a Carris para chegar a Madrid ou a Transtejo para Boston, mesmo assim o dinheiro não iria para aliviar a tua carga fiscal e de restantes amigos do Lions Club.

Com elevado grau de certeza, o dinheiro iria para a banca, para mais umas Tecnoformas, uma ou outra PPP, vários secretários de Estado, algumas adjudicações a empresas de amigos numa autarquia qualquer perto de Gaia, em palcos papais… enfim, em tudo e um par de botas. Mas não chegaria ao alívio fiscal. Nem às creches ou ao aumento do salário mínimo. Muito menos ao SNS. 

close-up photo of assorted coins

Portanto, Luís, seria gasto na mesma, perdido nas teias de interesse e de corrupção sem que o país beneficiasse com isso. Ora, por muito que isso custe a engolir, pelo menos com a TAP está a ser gasto em algo que serve o país e que traz riqueza. Espero que por esta altura do nosso debate – pelo menos esta parte – esteja apreendida.

Há ainda a insistência na casca de banana do financiamento público ao longo dos anos. O Luís não se cansa de ser Queiroz, e obriga-me assim a novo cruzamento do Paneira para o Isaías.

A União Europeia proibia a ajuda às companhias de bandeira. Ponto final. As excepções foram todas aprovadas. A última delas, repito, depois de dois anos de paragem, por causa da covid-19, e foi igual para todas: Lufthansa, SAS, Air France, British, ITA, e por aí fora.

Todas com prejuízos, todas resgatadas, todas a voar hoje. Algumas low cost foram no vento dos mercados; as companhias de bandeira não. Espero que também não seja preciso explicar porquê. Uma coisa é serviço público, outra é vender bilhetes para andar no carrossel da feira da Cruz de Pau. Ao fim de 15 dias a feira vai para outra paróquia; já o serviço público fica enquanto… existir público. O primeiro é irrelevante; o segundo é essencial.

gray and white airplane on flight near clear blue sky

Isaías faz o segundo; agora de perna esquerda perante um Lemajic desprotegido 

Este pedaço de prosa do Luís deixou-me a pensar:

Em relação à ‘superioridade moral’ que exibe, em particular o “argumento de paga quem usa é o típico de quem defende uma sociedade não solidária”, ajuda-me a compreender o seu fascínio pela eugenista Suécia. Trata-se de um país protestante, cultura que deu origem a todas as ideologias totalitárias, como o socialismo, o comunismo, o fascismo e o nazismo. Julgo que o Tiago se encontra entre as duas primeiras.

Agradeço, desde já, a oportunidade de ficar fora do restrito clube das suásticas: é gente com talento para a decoração de corpos na perspectiva do utilizador, e até com jeito para línguas, já que escrevem sempre em alemão, mas de facto não são bem a minha praia.

Já o socialismo e o comunismo deixam-me algo na expectativa, porque dependem do interlocutor e das respectivas confusões. Pelo que vou lendo nas palavras do Luís, parece-me que ele será um dos que juram a pés juntos que Portugal vive num regime socialista e que Putin, esse comunista marafado, segue os ensinamentos de Lenine. De modo que fica sempre difícil meter pensamentos numa gaveta e catalogá-los.

Mas posso tentar. Aquilo que eu defendo é relativamente simples de compreender, julgo eu. Acredito num modelo de sociedade em que todos têm o básico indispensável para uma vida com dignidade. Básico significa comida, um tecto e educação. Defendo que os impostos, progressivos, devem ser aplicados a favor dos contribuintes, começando na satisfação das necessidades básicas descritas anteriormente. Defendo Educação (verdadeiramente) universal como pilar da Economia e um sistema social que protege os mais carenciados, seja por doença ou por circunstâncias da vida que os levam a perder o rendimento vindo do trabalho.

Estando isto garantido pelo erário público, sou aberto a discutir as prioridades seguintes. O nome da ideologia para isto deixo ao critério do Luís. A Suécia, que não me fascina particularmente, conseguiu colocar muitas destas coisas em funcionamento, pouco depois de saírem da miséria e de deixarem de comer batatas de manhã à noite. Não deve ser rocket science.

Aquilo que eu não defendo, certamente, é aquela que me parece ser a ideologia do meu companheiro economista: uma espécie de selva do salve-se quem puder. Um mundo regulado por mercados que, acrescente-se, neste século parecem não conseguir acertar o passo. Um mundo onde nos cobram menos impostos e cada um cuida de si. Uma sociedade onde a perda do emprego representa o fim da vida. O liberalismo desenfreado como aquele que se pratica nos Estados Unidos, onde dezenas dormem nas mesmas ruas onde os executivos fazem o jogging matinal. Também vi, ninguém me contou. Tal como os fornos de cal do meu bisavô.

person in red sweater holding babys hand

Já que o Luís parece não ser fã dos liberais portugueses, e em cada linha que escreve transpira individualismo, arrisco que será esta a sua ideologia. Deixem-me ganhar dinheiro em paz que pagarei as minhas próprias idas ao hospital (da CUF). Os outros que se orientem. Criem unicórnios. Todos.

A referência a ditaduras, como exemplos onde o bem comum se sobrepôs ao indivíduo, é um pau de dois bicos. Percebo que vem em todos os crachás dos liberais essa conversa da liberdade individual, mas, neste caso, é facílimo encontrar exemplos de sociedades pensadas para um todo onde a força individual está presente.

Os nórdicos funcionam assim. São ensinados a pensar como um colectivo onde cada um é parte integrante. Isto significa que ninguém fica para trás, mas nem por isso se deixa de premiar o mérito e esforço individual. É ver quantas pequenas empresas são criadas, os impostos que são pagos, o peso do sector público (30% dos empregos) e a quantidade de multinacionais que este país deu ao Mundo. E tudo partindo de uma base colectiva.

O mundo, ao contrário do que o Luís parece acreditar, não se divide no individualismo ou ditaduras fascistas. Há muito campo para explorar pelo meio.

cars parked in front of building during daytime

Quando o Luís me apelida de indivíduo dominante e árbitro de um bem maior com aspirações de poder, fico de facto baralhado. A nossa agradável discussão começou com o meu companheiro a juntar-se ao coro dos que arrasam a TAP, pedindo o seu encerramento e condenando à miséria uns milhares de trabalhadores. Já para não falar nas perdas para o próprio país.

Eu só defendi exactamente o contrário. Ou seja, a manutenção dos empregos e do serviço ao país. Visto daqui, o árbitro que pretende dominar e alterar vidas alheias, não pareço ser eu. Estou certo que ainda chegaremos aos judeus escravizados por Cleópatra e ao momento em que o camarada Moisés abriu o Mar Vermelho (ou foi só no filme?), para justificar a entrega da TAP ao grupo da Iberia.    

Agrada-me ainda assim, em toda esta conversa, perceber que o Luís conseguiu pedir a venda da TAP e a substituição dos seus serviços pelo misterioso “mercado”, com o mesmo número de argumentos que o Ventura usou para defender o padre amigo. Bola, como diria o poeta da Reboleira.

O resto, fica para um jantar… Pago pelo meu amigo empreendedor.

 

Tiago Franco é engenheiro de desenvolvimento na EcarX (Suécia)


N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

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