Acórdão demolidor contra a Administração Central do Sistema de Saúde

Internamentos hospitalares: Ministério da Saúde “estrebucha” mas vai ter (mesmo) de mostrar base de dados escondida

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Enquanto coniventes investigadores do Instituto Nacional de Saúde Dr. Ricardo Jorge garantem, num relatório ontem divulgado, que não existem dados disponíveis para saber as causa do excesso de mortalidade, o PÁGINA UM continua a sua luta pela transparência, tentando obrigar o Ministério da Saúde a mostrar as diversas bases de dados efectivamente existentes mas intencionalmente escondidas sobre os internamentos e as causas de morte dos portugueses. Um acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul – a segunda instância – veio agora reconfirmar a legitimidade do direito do PÁGINA UM para ver aquilo que o Governo não quer mesmo mostrar: a base de dados que permite saber quais foram as doenças que levaram os portugueses a serem internados e quais as suas taxas de mortalidade ao longo do tempo. A Administração Central do Sistema de Saúde, presidido por um amigo de longa data da ex-ministra da Saúde Marta Temido, tem agora 10 dias para disponibilizar ao PÁGINA UM a base de dados dos Grupos de Diagnósticos Homogéneos.


É um acórdão verdadeiramente histórico em prol da transparência – e a confirmação de (mais) uma derrota da Administração Central do Sistema de Saúde (ACSS) na desesperada tentativa de esconder o que se tem passado no Sistema Nacional de Saúde nos últimos anos.

Aprovado pelos desembargadores Ricardo Ferreira Leite, Catarina Jarmela e Paula Ferreirinha Loureiro, o acórdão com data de 23 de Março, em resposta a um recurso da ACSS, é categórico na confirmação da sentença de primeira instância, de Novembro do ano passado, que obrigara a entidade tutelada pelo Ministério da Saúde a “facultar (…) o acesso ou cópia digital da base de dados do GDH [Grupos de Diagnósticos Homogéneos], expurgada dos dados pessoais que nela constem” ao PÁGINA UM.

Marta Temido (ex-ministra da Saúde) e Victor Herdeiro (presidente da ACSS), terceiro e quarto a contar da esquerda, juntos na sessão de apresentação dos novos Estatutos do SNS no passado dia 7 de Julho. A antiga governante e o dirigente da ACSS foram companheiros durante três mandatos na Associação Portuguesa de Administradores Hospitalares.

O acórdão do passado dia 23 de Março concede um prazo de 10 dias úteis para o seu cumprimento. Embora ainda haja possibilidades de recurso para o Supremo Tribunal Administrativo, um volte-face será pouco provável: os desembargadores descartaram agora qualquer possibilidade de nulidades pretendidas pela ACSS, através da sociedade de advogados BAS, que através de contratos por ajuste directo tem assessorado diversas entidades ligadas ao Ministério da Saúde.

A base de dados em causa (BD-GDH), gerida sem influência governamental, integra todos os doentes internados nos hospitais do Serviço Nacional de Saúde, identificando o diagnóstico principal (aquele que, após o estudo do doente, revelou ser o responsável pela sua admissão no hospital), os diagnósticos secundários (todos os restantes diagnósticos associados à condição clínica do doente, podendo gerar a existência de complicações ou de comorbilidades), os procedimentos realizados, destino após a alta (transferido, saído contra parecer médico, falecido) e, no caso de recém-nascidos, o peso à nascença.

Contém também dados de identificação (nome, idade e sexo), mas como em qualquer base de dados moderna, o expurgo de dados nominativos, neste caso o nome do doente, é uma opção prevista na concepção dos perfis de acesso, tornando assim os dados completamente anonimizados (insusceptíveis de identificação de pessoas), permitindo assim todo o tipo de tratamento estatístico.

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Constitui assim – e sem qualquer risco de violação da intimidade, porque os dados estão completamente anonimizados – uma ferramenta por excelência para identificar e quantificar o efectivo impacte da pandemia e da covid-19 desde 2020. Perante as dificuldades de acesso aos dados integrais do Sistema de Informação dos Certificados de Óbito (SICO) – que também se encontra em análise nos tribunais administrativos –, a BD-GDH possibilitará obter indicadores fundamentais sobre as principais afecções e doenças que poderão estar a contribuir para o contínuo excesso de mortalidade, numa fase em que a covid-19 se encontra já em fase endémica.

Esta redobrada vitória histórica do PÁGINA UM – que se sucede a outras sentenças favoráveis – surge no decurso de um longo processo de obstaculização por parte do presidente da ACSS, Victor Herdeiro – amigo de longa data da ex-ministra Marta Temido –, que começou, em meados de Maio passado, por expurgar do Portal da Transparência do SNS uma base de dados pública sobre morbilidade e mortalidade hospitalar, uma versão manipulada e mais simplista da BD-GDH.

A decisão de Victor Herdeiro – justificada pela necessidade nunca provada de “análise interna” – foi uma reacção política ao conjunto de artigos de investigação do PÁGINA UM sobre o desempenho hospitalar desde 2020, e não apenas relacionado com a covid-19.

No dossier “Investigação SNS”, publicado entre 13 de Maio e 1 de Junho do ano passado, o PÁGINA UM usou uma base de dados que esteve, durante um período, suspensa. A BD-GDH tem um potencial informativo muito superior.

Mesmo sendo uma simplificação da BD-GDH, essa base de dados que estava no Portal da Transparência permitira, através de análise estatística feita pelo PÁGINA UM, revelar que, até Janeiro desse ano, houvera menos 51 mil hospitalizações de crianças durante a pandemia por todas as doenças; apurar que a variante Ómicron tinha indicadores de letalidade inferiores aos da gripe; identificar problemas graves (com aumento de taxas de letalidade mesmo em alas não-covid); determinar que a taxa de mortalidade da covid-19 foi evoluindo ao longo da pandemia e em função dos hospitais, sendo 30% superior à das doenças respiratórias; desmistificar a alegada elevada pressão durante a pandemia, até porque houve menos 280 mil doentes por outras causas não-covid; e também identificar estranhas descidas na mortalidade por cancros e outras doenças, bem como colocar dúvidas sobre a mortalidade por covid-19 nos hospitais.

Após várias tentativas para “convencer” o Ministério da Saúde – que nunca quis rectificar a conduta de Victor Herdeiro –, o PÁGINA UM apresentou em 19 de Agosto passado uma intimação junto do Tribunal Administrativo de Lisboa contra a ACSS, mas já não apenas para a reposição da versão original da base de dados da mortalidade e morbilidade – que fora entretanto reposta mas completamente “mutilada”. Com efeito, foi também solicitado o acesso à BD-GDH, por se ter considerado ser uma base de dados mais completa e muito mais “imune” a intervenções políticas.

No dossier “Investigação SNS”, publicado entre 13 de Maio e 1 de Junho, o PÁGINA UM usou uma base de dados que esteve, durante um período, suspensa. A BD-GDH tem um potencial informativo muito superior.

Desde logo, a ACSS mostrou que não estava interessada em abrir mão à “secreta” BD-GDH. Alegando que já repusera a base de dados original da morbilidade e mortalidade hospitalar – o que, de facto, terá sucedido em meados de Agosto –, a ACSS começou por tentar iludir a juíza do processo, Ilda Maria Côco, fazendo crer ter já satisfeito o pedido integral do PÁGINA UM, e solicitou assim que a intimação fosse “totalmente julgada improcedente e indeferida, tudo com legais consequências”.

Somente após um requerimento do advogado do PÁGINA UM, Rui Amores, provando que estava sobretudo em causa a continuada recusa do acesso à BD-GDH, a ACSS veio pronunciar-se sobre este assunto – ou seja, foi obrigada a justificar a recusa. Mas recorrendo à mentira.

Com efeito, através da mesma sociedade de advogados, a ACSS defendeu que a BD-GDH continha “dados pessoais” e que “as funcionalidades dos sistemas de informação nos quais se encontram localizadas não permitem tecnicamente a respetiva consulta sem acesso aos dados pessoais em causa”, acrescentando que “reprodução (digital) da informação da base de dados com expurgo dos dados pessoais implicaria a criação ou adaptação da base de dados com um esforço desproporcionado que ultrapassa a simples manipulação”.

E concluiu ainda que, “associado à extensão dos dados em causa e à própria arquitetura dos sistemas de informação em que se suportam as bases de dados”, obrigar a anonimização “acarretaria para ACSS uma atuação administrativa, com gestão dos recursos disponíveis para a prossecução das respetivas atribuições legais em desvio dos princípios aplicáveis e pelos quais se deve reger a atividade administrativa, nomeadamente, os princípios do interesse público, da boa administração, da proporcionalidade e da razoabilidade”.

Este arrazoado tinha, porém, apenas um fito: continuar a esconder a BD-GDH do escrutínio público, tentando convencer a juíza do processo de que a anonimização de uma base de dados deste género não é um processo corriqueiro, nem que basta seleccionar as variáveis que se pretenda e, nessa linha, excluir aquelas que não se pretendem. Destaque-se que o PÁGINA UM jamais teve a pretensão de revelar dados pessoais de doentes, sobretudo por não ser ético, mas também por ser de interesse nulo para quaisquer diagnósticos em saúde pública.

Mas este arrazoado jurídico tinha perna curta. De facto, a anonimização da BD-GDH é um procedimento tão corriqueiro e bem conhecido da ACSS, tanto assim que esse expediente administrativo costuma estar expressamente delegado num dos vice-presidentes para conceder acessos a investigadores. Por exemplo, no presente conselho directivo da ACSS, Victor Herdeiro delegou na sua vice-presidente Sandra Brás a competência “para autorizar o fornecimento de dados anonimizados provenientes da Base de Dados Nacional de Grupos de Diagnósticos Homogéneos (BD-GDH)”, conforme a Deliberação 835/2021 publicado em Diário da República em 9 de Agosto do ano passado.

Na sentença de primeira instância, a juíza Ilda Côco deu razão ao PÁGINA UM. De acordo com a magistrada, como a ACSS apenas se limitou a “alegar, de forma conclusiva, que o expurgo de dados pessoais implicaria a criação ou adaptação da base de dados com um esforço desproporcionado (…), mas sem que alegue quaisquer factos concretos que permitam concluir no sentido por si pretendido”, terá assim 10 dias para facultar o acesso à base de dados… carregando no teclado e/ ou no rato do computador para expurgar os dados nominativos.

No recurso para o Tribunal Central Administrativo Sul, a ACSS ainda alegou nulidades diversas e apontou um custo elevado para disponibilizar uma base de dados que terá 44 milhões de registos – o que, convenhamos, numa época de big data dá tanto trabalho como 44 registos – mas os desembargadores não foram convencidos.

No acórdão, os desembargadores afirmam que a ACSS “limitou-se a considerações genéricas sobre a onerosidade de satisfação do peticionado, nunca procurando densificar (como pretende fazer agora, em sede de recurso), em que se traduziria tal ‘onerosidade’ e em que medida a mesma se mostrava ‘desmesurada’.”

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E criticam os desembargadores ainda a ACSS por apresentar novos trunfos nesta fase. “O que, oportunamente, não foi levado aos autos, permitindo ao tribunal a respetiva apreciação, in illo tempore, não pode agora, em sede de recurso, ser usado como ‘arma de arremesso’ contra uma argumentação que, forçosamente, não levou tais argumentos em linha de conta”, destaca-se no acórdão.

A única “vitória” da ACSS neste recurso acabou por ser na distribuição das custas. Na primeira instância, a juíza decretara que deveria ser a ACSS a arcar com todas as custas do processo. Os desembargadores, assumindo que uma pequena parte do pedido – que envolvia também a disponibilização de uma outra base de dados no Portal da Transparência do SNS – já fora satisfeita – determinaram que o PÁGINA UM assumisse afinal um terço das custas, ficando os outros dois terços da responsabilidade da entidade presidida por Víctor Herdeiro, que há mais de nove meses anda a esconder informação pública.


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