Ministério da Saúde já faz tudo para proteger pneumologista de ser castigado pela Inspecção-Geral das Actividades em Saúde. Na intimação do PÁGINA UM feita no Tribunal Administrativo de Lisboa, o gabinete de Manuel Pizarro decidiu substituir a IGAS, que é o réu no processo, e defende agora secretismo do processo de averiguações por alegadamente estar inserido no inquérito disciplinar que está engavetado há 14 meses. A Comissão de Acesso aos Documentos Administrativos advoga que “um documento administrativo, ainda que possa ser utilizado em processo judicial, não perde, só por isso, a sua natureza de documento administrativo”.
Manuel Pizarro já subiu mais um patamar na defesa intransigente do obscurantismo como forma de fazer política: agora, o Ministério da Saúde já se aplica na ingerência de processos disciplinares levados a cabo pela Inspecção-Geral das Actividades em Saúde (IGAS).
Depois de em Dezembro do ano passado o gabinete do ministro ter garantido ao PÁGINA UM que aguardaria a conclusão do processo disciplinar levantado pela IGAS ao pneumologista Filipe Froes por forte suspeita de ligações ilegais ao sector farmacêutico, o Ministério da Saúde assumiu agora a defesa do secretismo daquela investigação, que já dura há longos 14 meses.
Apesar dos longos 14 meses que já dura aquele processo disciplinar, não há conclusão à vista – apenas agora a defesa intransigente de que as provas coligidas até Fevereiro de 2022, que constam num processo de averiguações, sejam mantidas secretas, custe o que custar.
Apesar da IGAS ter autonomia administrativa, as alegações desta entidade – que tem atribuições inspectivas que exigem a máxima independência política – junto do Tribunal Administrativo, em resposta a uma intimação do PÁGINA UM, foram, desta vez, assumidas directamente pelos Serviços Jurídicos e de Contencioso da Secretaria-Geral do Ministério da Saúde.
O argumento usado pelo Ministério da Saúde, que cita o artigo 10º do Código do Processo nos Tribunais Administrativos, não encontra respaldo com outras situações similares envolvendo a IGAS, o que demonstra uma ingerência política num processo da esfera disciplinar, e que envolve um conhecido médico com ligações à indústria farmacêutica.
De facto, num outro processo de intimação do PÁGINA UM – aliás, favorável – contra a IGAS, em Agosto do ano passado, a defesa foi sempre assumida por aquela entidade, sem participação directa ou indirecta do Ministério da Saúde. Nessa intimação estavam em causa algumas dezenas de processsos instaurados pela IGAS, incluindo o do presidente da Sociedade Portuguesa de Pneumologia, António Morais, que viria a redundar no seu afastamento como consultor do Infarmed e na aplicação de uma coima.
Saliente-se, contudo, que apesar de o Ministério da Saúde defender agora, no caso específico do processo que envolve Filipe Froes, que a intimação deveria ser feita contra si, na verdade a IGAS tem sido réu em diversos processos nos tribunais administrativos ao longo dos últimos anos. De acordo com uma consulta do PÁGINA UM à base de dados do Citius, encontram-se 11 processos apenas no Tribunal Administrativo de Lisboa em que a IGAS é classificado com réu – ou seja, foi a entidade directamente requerida, incluindo um levantado pela Ordem dos Enfermeiros em 2019.
Mostra-se assim cada vez mais evidente que Filipe Froes – que recentemente ganhou maior peso institucional, após a eleição de Carlos Cortes para bastonário da Ordem dos Médicos, do qual foi mandatário durante a campanha – goza de uma protecção política do Ministério da Saúde, por ter sido um “porta-voz” mediático na defesa da estratégia governamental durante a pandemia.
Ao invés de determinar a aceleração dos procedimentos para apurar ilegalidades nas ligações entre Filipe Froes e as farmacêuticas – que surgiram logo no Verão de 2021, quando foram conhecidos os montantes que o pneumologista recebia de empresas deste sector, apesar de se manter como consultor da DGS –, o Ministério da Saúde está activamente a obstaculizar o apuramento da verdade.
Refira-se que, nesta fase, não estão já apenas em causa meras insinuações ou suspeitas. O inquérito disciplinar em curso há quase 14 meses, para eventuais efeitos sancionatórios, já que Filipe Froes é funcionário público, surge após a conclusão de um processo de averiguações – que se reveste já de grande formalismo –, ao longo de cinco meses, onde se terão encontrado provas substanciais. Se tal não tivesse sucedido, teria havido um arquivamento.
Evidente se mostra sim a delicadeza política deste assunto, que tem sido tabu na imprensa mainstream, que continua a considerar Filipe Froes como uma referência de independência, mesmo para falar de terapêuticas e medicamentos onde tem evidentes conflitos de interesse.
Ainda esta semana, em declarações ao Diário de Notícias, onde é colunista, Filipe Froes defendia que “há um acréscimo de risco de mortalidade por doença tromboembólica e cardíaca” mas apenas a associada à “após a infeção pelo SARS-CoV-2”, acrescentando ainda que “o risco de morte súbita está aumentado em dez vezes, após a covid-19, que a destruição de células pancreáticas após a infeção aumentou o aparecimento de novos casos de diabetes e que quem tinha doenças crónicas também ficou com a sua comorbilidade agravada após ter contraído a doença”.
Ou seja, o pneumologista descartou qualquer hipótese (académica que seja) de existirem efeitos adversos das vacinas a causar essa mortalidade excessiva. Saliente-se que Froes é consultor ou palestrante de todas as farmacêuticas que produzem vacinas contra a covid-19 administradas em Portugal (Pfizer, Moderna, AstraZeneca e Jannsen).
A confirmação de delitos com efeitos disciplinares por parte de Filipe Froes poderia assim trazer consequências políticas e públicas, sendo esta uma das explicações para o processo não ter um fim, nem ser possível consultar qualquer diligência tomada pela IGAS desde Setembro de 2021.
Recorde-se que após a recusa da IGAS em libertar o acesso ao processo de averiguações a Filipe Froes, iniciado em Setembro de 2021 – que resultaria na instauração formal de um processo disciplinar em 19 de Fevereiro de 2022 –, o PÁGINA UM apresentou há cerca de um mês e meio uma nova intimação no Tribunal Administrativo de Lisboa.
Neste procedimento alegava-se que, de acordo com a Lei do Acesso aos Documentos Administrativos, “o acesso aos documentos administrativos preparatórios de uma decisão ou constantes de processos não concluídos pode ser diferido até à tomada de decisão, ao arquivamento do processo ou ao decurso de um ano após a sua elaboração, consoante o evento que ocorra em primeiro lugar”, e que “o acesso ao conteúdo de auditorias, inspeções, inquéritos, sindicâncias ou averiguações pode ser diferido até ao decurso do prazo para instauração de procedimento disciplinar.”
Significa isso que o processo de averiguações às práticas suspeitas de Filipe Froes – formalmente concluído em 19 de Fevereiro de 2022 – já deveriam estar disponíveis, na pior das hipóteses em 19 de Fevereiro deste ano. E, na verdade, o conteúdo do processo de averiguações até deveria estar disponível a partir da decisão do inspector-geral Carlos Caeiro Carapeto em instaurar o processo disciplinar ao médico Filipe Froes – que se tornou figura pública durante a pandemia, enquanto era simultaneamente consultor da Direcção-Geral da Saúde (na definição das terapêuticas anti-covid) e de farmacêuticas com interesses comerciais directos à pandemia.
De facto, o processo de averiguações – uma fase formal dos procedimentos da IGAS – terminou com o despacho do inspector-geral da IGAS que, face à gravidade dos indícios apurados, decidiu existir matéria suficiente para um processo de inquérito disciplinar.
Porém, 14 meses depois, o processo mantém-se inconcluso – e, aparentemente, ao contrário de existirem manifestações para o terminar, há sim movimentações para tudo manter secreto.
Aquando da solicitação do PÁGINA UM à consulta do processo de averiguação ao pneumologista – que, aliás, deveria ter sido incluído num vasto pedido que já culminara numa sentença anterior do Tribunal Administrativo de Lisboa, mas sobre o qual a IGAS preferiu omitir por não ser claro que o nosso pedido incluía o processo de Filipe Froes – aquela entidade inspectiva recusou tal pretensão, alegando que “o processo disciplinar é de natureza secreta até à acusação, incluindo, naturalmente o inquérito que o precede”, invocando mesmo uma norma da Lei Geral do Trabalho em Funções Públicas.
Porém, nessa norma nada se refere sobre o inquérito precedente, neste caso o processo de averiguações, uma vez que simplesmente se diz que “o processo disciplinar é de natureza secreta até à acusação, podendo, contudo, ser facultado ao trabalhador, a seu requerimento, para exame, sob condição de não divulgar o que dele conste.” Por agora, o PÁGINA UM pretende pelo menos ter acesso ao processo de averiguações e ao despacho para a abertura do processo disciplinar.
Agora, nas alegações junto do Tribunal, o Ministério de Manuel Pizarro segue a mesma estratégia para manter o processo de averiguações secreto: os documentos encontram-se anexados ao processo de inquérito ainda em curso. No entanto, saliente-se que o entendimento da Comissão de Acesso aos Documentos Administrativos (CADA), presidido pelo juiz conselheiro Alberto Oliveira, terá sido muito claro sobre esta matéria: “um documento administrativo, ainda que possa ser utilizado em processo judicial, não perde, só por isso, a sua natureza de documento administrativo”. Ou seja, a existência de processos judiciais ou outros que têm carácter secreto não pode servir de truque, através da sua inserção, para abranger outros documentos politicamente sensíveis.
Essa postura da CADA foi, aliás, explicitamente utilizada num célebre parecer da CADA de 13 de Outubro de 2021 que concedeu razão ao ex-primeiro-ministro José Sócrates no acesso ao inquérito à distribuição da Operação Marquês. O Conselho Superior da Magistratura alegava que os documentos desse inquérito eram secretos por terem sido inseridos em processo judicial ainda em segredo de justiça, mas a CADA considerou que eram, à mesma, documentos administrativos e que deveriam ser acessíveis.