a deriva dos continentes

Ga-jas

green chameleon on brown wooden post

minuto/s restantes

Uma luz solar minúscula, que não passa de um de um dos cem mil sóis da nossa galáxia, será dificilmente detectada. E a nossa galáxia é um dos mil milhões de galáxias, rodando a velocidades que excedem a velocidade da luz – até que cada galáxia acaba por arder, para ser substituída pelas novas galáxias que preservam o equilíbrio desta dança.
Timothy Leary
THE SEVEN TONGUES OF GOD, 1965


Deixei-vos, na última semana, prestes a começar a ouvir o monólogo improvisado de um actor com um grave problema oncológico, que veio viver aqui para Estremoz com o filho de quatro anos, Miguel, a quem tenciona dedicar este seu último trabalho. Gonçalo estudou Shakespeare em Londres, especializou-se nos seus monólogos, recebeu críticas entusiásticas e ovações em pé. Quando voltou para Portugal foi devidamente ostracizado, como o País tanto gosta de fazer aos que se destacam no estrangeiro sem a ajuda de ninguém. Nunca se queixou. Aceitou papéis parvos em novelas e participações em reality-shows, continuando a trabalhar na sua arte, mas agora em português, aperfeiçoando cada vez mais o estilo e aguardando a hora certa. Ao saber-se gravemente doente veio viver para uma rua perto da minha, e decidiu começar a falar de Pai para Filho. Convidada a assistir ao primeiro improviso, sentei-me silenciosamente ao lado do Miguel, também ele muito atento na sua cadeirinha, liguei o gravador, e ouvi o monólogo delicioso que aqui partilho convosco.


“Querido Miguéu,” começou o Gonçalo num tom firme mas carinhoso, sem qualquer teatralidade, “por favor, ouve o teu Pai. Tens mesmo que ouvir o Pai agora, porque a seguir ninguém vai ter tomates para te dizer tudo isto, por muito que tudo isto seja verdade.”

Embora falasse sem qualquer esforço aparente, havia no seu tom de voz qualquer coisa de tal forma dramática que o Miguel ficou imóvel, de boca aberta, a olhar para o Pai.

“Quando fores um homem crescido”, continuou o Gonçalo, “por favor, promete-me que vais ter muito cuidado com o pior que pode haver, meu querido filho. Sabes o que é o que pior que pode haver, para um crescido, Miguel? O Pai diz-te. O pior que pode haver é não nos defendermos a tempo e depois sermos vítimas deste Género… deste cerco constante deste Género… sei lá, desta porcaria deste circo deste Género Feminino. Tu vais ver. Juro-te, é que tu vais mesmo ver! Cresce só mais uns aninhos, que vais logo ver! Tem cuidado, Bebé. Nunca oiças nada do que elas te disserem. Se por acaso ouvires mesmo alguma coisa, esquece-te logo do que foi. E, sobretudo, nunca respondas a nada do que elas te perguntarem, porque nunca hás-de conseguir responder-lhes o que elas queriam ouvir, e te garanto que não há ninguém neste mundo que saiba verdadeiramente o que é que elas querem ouvir, assim para cada contexto, para cada momento, até para qualquer porra de qualquer fotografia. Nem se respira. Tu tens é que ser bruto, mas mesmo um ganda bruto, porque, assim como assim, mais cedo ou mais tarde, elas vão TODAS, SEMPRE, acabar por te acusar de seres um ganda bruto. Então olha, goza-te bem disso. Deixa-lhes sempre a puta da cama por fazer. Esquece-te sempre de limpar o raio que o parta do lavatório depois de te barbeares. Vê se consegues deixar sempre a tampa da retrete para cima, porque nunca ninguém disse que elas é que têm o direito de mandar na casa de banho. E, se puderes, deixa todos os dias imensas palavras por dizer. Todos os dias, mesmo. Convictamente. Deliberadamente. Como se fosse uma religião. Não se pode dar qualquer espécie de confiança a uma GA-JA quando se quer passar bem e viver em paz.

Miguel, animadíssimo com a animação crescente do Pai, deu um murro na mesinha da sua cadeirinha alta de bebé e repetiu, todo enfático,

“Uma GA-JA!”

Gonçalo fez-lhe um grande sorriso, muito orgulhoso dos seus ensinamentos e da boa recepção do Miguel. Respirou fundo, bebeu um copo de água, piscou o olho ao Filho, e prosseguiu.

O meu Pai, José Pinto Correia
Tinha seis ga-jas lá em casa, portanto imagina-se o que terá sofrido.

“Então vá, Miguéu. Muita atenção, agora, boa? É importante. Vamos mas é a uma boa CENA DE GAJOS, porque por hoje já tivemos toneladas de paciência para os números delas, e portanto já temos todo o direito de curtir sem ter que dar explicações a ninguém.”

“Querido filhote, alguma vez te disse qual é a especialidade do teu Pai? O Pai é um actor de Shakespeare. E o seu melhor sempre foram os monólogos. E portanto, como já te dei os meus conselhos mais importantes e depois não sei se depois ainda te volto a ver, aqui vai um Monólogo de Shakespeare, improvisado só para ti.”

Céus. Afinal nada daquilo, e aquilo já tinha sido do caraças, era ainda o monólogo. Era “apenas” o prólogo do monólogo. Em certa medida, fôra o prólogo porque se notava que Gonçalo ficava cansado com facilidade: não conseguia tirar a mão do fundo das costas, sentou-se ao meu lado para respirar fundo e tomar dois opióides valentes, aproveitou para esvaziar toda a garrafa de água, e só quando eu lhe perguntei se queria que fosse buscar-lhe outra é que se lembrou que eu também estava ali. Riu-se, disse que sim, agarrou avidamente na garrafa de litro e meio que eu lhe trouxe do frigorífico, e entretanto já estava o Miguéu a fazer uma birra porque queria mais.

“Devias falar sentado”, sugeri eu.

“Monólogos de Shakespeare sentado? Não, não posso, sentado não consigo. Só preciso de respirar um bocado e esperar que os comprimidos façam efeito. Conta tu uma história qualquer ao puto para ele estar sossegado entretanto, pode ser?”

Claro que podia ser. Cansado, doente, ignorado pelo seu país, escondido do caos do mundo numa casinha de Estremoz, o Gonçalo tinha ali uma audiência captiva.

Clara Pinto Correia é bióloga, professora universitária e escritora

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