Bem-aventurados os que choram.
Jesus
O meu vizinho Gonçalo, o grande especialista em monólogos de Shakespeare que não se deixou abater nem pelas dores das metástases acabadas de remover do pâncreas, deixou-se ficar sentado, a beber mais uma garrafa de água, obviamente a poupar energias e a esperar que as duas Vicodins de dose máxima acabadas de engolir começassem a fazer aquele seu efeito mágico de limpar dali as dores, como se lhes passassem uma esfregona por cima. Fumou tranquilamente um cigarro, e quando chegou ao fim era evidente que já estava a sentir-se melhor. Levantou-se, respirou fundo, cravou os olhos no filho, aclarou a voz, e foi-se vendo ao espelho até encontrar o seu melhor ângulo. Depois de tudo isto, segurou no queixinho de Miguel com toda a ternura do mundo, pôs-lhe em cima da mesinha um balde de pipocas, e começou a debitar, mesmo só para ele conforme prometido, a última parte do seu monólogo de Shakespeare para crianças improvisado ali na hora.
“Ouve bem o teu Pai, meu querido filhote,” disse Gonçalo ao menino, muito baixinho, como se estivesse a revelar-lhe um plano secreto. “Eu dantes todas as noites pedia ao destino que te deixasse chegares a conhecer o teu Pai, que te deixasse chegares a ter verdadeiras aventuras de gajos com o teu Pai, entendes? Coitadinho do meu bebé, um menino tão feliz, e a gente quer contar-lhe uma história tão complicada… E esta história complicada nem sequer interessa, nem a ti nem a ninguém. O que interessa é que, depois de tantos esforços para me fazer feliz, a tua Mãe há-de fartar-se de esperar por um marido desaparecido. Nessa altura, a tua Mãe há de querer voltar a gozar-se da companhia de tudo o que eu não fui para ela nos últimos anos, a companhia assim de um Homem Mesmo Homem …”
Quando disse isto, por muito que quisesse mostrar-se compreensível e maduro, Gonçalo não conseguiu deixar de fazer uma careta – assim como se tivesse provado uma qualquer comida de paladar insuportável.
“E então, como isso não pode deixar de acontecer e eu não posso deixar de detestar a ideia, preciso que entendas que nada disso tem mal nenhum, onde quer que eu tenha ido parar na minha longa viagem, eu continuo a gostar da tua Mãe. E, sobretudo, continuo a gostar muito de ti. Só não tenho é a obrigação de gostar da outra besta que a tua Mãe escolher para pôr no meu sítio. Mas tu, filhote, vê se respeitas esse penetra imbecil, porque só fazer a tua Mãe feliz já é uma grande magia. És muito pequenino. Mas serás capaz de prometer isto ao Pai?”
O Miguel estava, evidentemente, todo orgulhoso de todas as palavras novas que já tinha aprendido nesse dia. Pôs-se a olhar para o pai com um sorriso rasgado.
“Esse Penetra Imbecil. Pai! Penetra Imbecil, Penetra Imbecil que quer fazer mal ao Pai. Penetra imbecil. Mata-se!”
O Gonçalo não conseguiu deixar de rir.
“Tu nunca mais ouvirás falar deste Penetra Imbecil, meu Principezinho,” explicou ele ao filho, ainda dentro desse riso.
“Porquê?”, perguntou logo o Miguel, naquele tom imperioso de complexidade epistémica tão própria das crianças[1].
“Porque não,” respondeu-lhe o pai, muito sério e muito terno. “Porque eu sou uma pessoa muito civilizada[2], portanto não vais ter autorização nem do Pai nem da Mãe para falares do Penetra Imbecil. Entendeste, meu pestinha? Não vais falar dele porque eu não vou deixar, e a tua Mãe também não vai deixar, porque queremos os dois que tu sejas muito feliz, mesmo quando eu já não estiver cá para te fazer rir. E a tua Mãe há-de contar-te que eu te amava muito e te fazia rir muito, assim como a fazia rir a ela, para ela ter mais coragem para tomar melhor conta de ti. Queres uma história nova muito gira, daquelas histórias que só o Pai é que sabe?”
Olhou outra vez para o bebé com um sorriso, mas este, agora, era meio comovido e meio contristado. Em resposta, o Miguel desatou aos berros que não queria que o Pai se fosse embora, e não demorou nada até já estar a fazer uma birra tremenda de menino assustado. O Gonçalo desistiu logo de falar mais com ele.
“Tenho aí centenas de truques para acabar imediatamente com estas situações,” sussurrou-me ele com um rápido piscar de olhos. “Enquanto a Catarina não souber deles e não decidir logo que sou um péssimo pai, tá-se bem.”
Então subiu tranquilamente o volume do plasma, mudou de canal, e apareceu subitamente a jovem Angelina Jolie num dos seus antigos filmes de Lara Croft. O Miguel deu um salto tal na cadeirinha, com uma expressão de assombro tão grande, que deixou cair ao chão o baldinho das pipocas. Depois, já sem ligar nenhuma a nenhum de nós, começou a tentar virar sozinho a sua cadeirinha, para ficar mais perto do monitor onde decorriam as aventuras de Lara Croft.
“Estás a ver?”, sorriu-me o Gonçalo, enquanto eu me preparava para sair. “Gajos!”
Clara Pinto Correia é bióloga, professora universitária e escritora
[1] Claro que há formas muitíssimo mais simples de dizer “complexidade epistémica”, mas e então? Numa história como esta, onde é que eu havia de exibir a minha cultura?
[2] Aqui Gonçalo fala exactamente com aquele tipo de humor com que eu escreveria, pelo que admito que possa ter havido um erro nas minhas notas.