a deriva dos continentes

O penetra imbecil

green and yellow chameleon

por Clara Pinto Correia // Abril 23, 2023


Categoria: Opinião

minuto/s restantes

Bem-aventurados os que choram.

Jesus


O meu vizinho Gonçalo, o grande especialista em monólogos de Shakespeare que não se deixou abater nem pelas dores das metástases acabadas de remover do pâncreas, deixou-se ficar sentado, a beber mais uma garrafa de água, obviamente a poupar energias e a esperar que as duas Vicodins de dose máxima acabadas de engolir começassem a fazer aquele seu efeito mágico de limpar dali as dores, como se lhes passassem uma esfregona por cima. Fumou tranquilamente um cigarro, e quando chegou ao fim era evidente que já estava a sentir-se melhor. Levantou-se, respirou fundo, cravou os olhos no filho, aclarou a voz, e foi-se vendo ao espelho até encontrar o seu melhor ângulo. Depois de tudo isto, segurou no queixinho de Miguel com toda a ternura do mundo, pôs-lhe em cima da mesinha um balde de pipocas, e começou a debitar, mesmo só para ele conforme prometido, a última parte do seu monólogo de Shakespeare para crianças improvisado ali na hora.


“Ouve bem o teu Pai, meu querido filhote,” disse Gonçalo ao menino, muito baixinho, como se estivesse a revelar-lhe um plano secreto. “Eu dantes todas as noites pedia ao destino que te deixasse chegares a conhecer o teu Pai, que te deixasse chegares a ter verdadeiras aventuras de gajos com o teu Pai, entendes? Coitadinho do meu bebé, um menino tão feliz, e a gente quer contar-lhe uma história tão complicada… E esta história complicada nem sequer interessa, nem a ti nem a ninguém. O que interessa é que, depois de tantos esforços para me fazer feliz, a tua Mãe há-de fartar-se de esperar por um marido desaparecido. Nessa altura, a tua Mãe há de querer voltar a gozar-se da companhia de tudo o que eu não fui para ela nos últimos anos, a companhia assim de um Homem Mesmo Homem …”

Quando disse isto, por muito que quisesse mostrar-se compreensível e maduro, Gonçalo não conseguiu deixar de fazer uma careta – assim como se tivesse provado uma qualquer comida de paladar insuportável.

“E então, como isso não pode deixar de acontecer e eu não posso deixar de detestar a ideia, preciso que entendas que nada disso tem mal nenhum, onde quer que eu tenha ido parar na minha longa viagem, eu continuo a gostar da tua Mãe. E, sobretudo, continuo a gostar muito de ti. Só não tenho é a obrigação de gostar da outra besta que a tua Mãe escolher para pôr no meu sítio. Mas tu, filhote, vê se respeitas esse penetra imbecil, porque só fazer a tua Mãe feliz já é uma grande magia. És muito pequenino. Mas serás capaz de prometer isto ao Pai?”

O Miguel estava, evidentemente, todo orgulhoso de todas as palavras novas que já tinha aprendido nesse dia. Pôs-se a olhar para o pai com um sorriso rasgado.

“Esse Penetra Imbecil. Pai! Penetra Imbecil, Penetra Imbecil que quer fazer mal ao Pai. Penetra imbecil. Mata-se!”

O Gonçalo não conseguiu deixar de rir.

silhouette of man standing in dark room

“Tu nunca mais ouvirás falar deste Penetra Imbecil, meu Principezinho,” explicou ele ao filho, ainda dentro desse riso.

“Porquê?”, perguntou logo o Miguel, naquele tom imperioso de complexidade epistémica tão própria das crianças[1].

“Porque não,” respondeu-lhe o pai, muito sério e muito terno. “Porque eu sou uma pessoa muito civilizada[2], portanto não vais ter autorização nem do Pai nem da Mãe para falares do Penetra Imbecil. Entendeste, meu pestinha? Não vais falar dele porque eu não vou deixar, e a tua Mãe também não vai deixar, porque queremos os dois que tu sejas muito feliz, mesmo quando eu já não estiver cá para te fazer rir. E a tua Mãe há-de contar-te que eu te amava muito e te fazia rir muito, assim como a fazia rir a ela, para ela ter mais coragem para tomar melhor conta de ti. Queres uma história nova muito gira, daquelas histórias que só o Pai é que sabe?”

Olhou outra vez para o bebé com um sorriso, mas este, agora, era meio comovido e meio contristado. Em resposta, o Miguel desatou aos berros que não queria que o Pai se fosse embora, e não demorou nada até já estar a fazer uma birra tremenda de menino assustado. O Gonçalo desistiu logo de falar mais com ele.

“Tenho aí centenas de truques para acabar imediatamente com estas situações,” sussurrou-me ele com um rápido piscar de olhos. “Enquanto a Catarina não souber deles e não decidir logo que sou um péssimo pai, tá-se bem.”

Então subiu tranquilamente o volume do plasma, mudou de canal, e apareceu subitamente a jovem Angelina Jolie num dos seus antigos filmes de Lara Croft. O Miguel deu um salto tal na cadeirinha, com uma expressão de assombro tão grande, que deixou cair ao chão o baldinho das pipocas. Depois, já sem ligar nenhuma a nenhum de nós, começou a tentar virar sozinho a sua cadeirinha, para ficar mais perto do monitor onde decorriam as aventuras de Lara Croft.

“Estás a ver?”, sorriu-me o Gonçalo, enquanto eu me preparava para sair. “Gajos!”

Clara Pinto Correia é bióloga, professora universitária e escritora


[1] Claro que há formas muitíssimo mais simples de dizer “complexidade epistémica”, mas e então? Numa história como esta, onde é que eu havia de exibir a minha cultura?

[2] Aqui Gonçalo fala exactamente com aquele tipo de humor com que eu escreveria, pelo que admito que possa ter havido um erro nas minhas notas.

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