Título
Dor fantasma
Autor
RAFAEL GALLO
Editora (Edição)
Casa das Letras (Março de 2023)
Cotação
16/20
Recensão
A escrita de Dor fantasma terá sido, de certo modo, um exercício catártico para Rafael Gallo, que se digladiava com uma depressão durante o processo criativo. O labor não foi em vão: a obra valeu ao autor brasileiro o Prémio Literário José Saramago 2022. Uma distinção que o escritor almejava, já que é um fã assumido do Nobel português da Literatura e leu quase todos os seus livros.
Nascido em São Paulo, Rafael Gallo venceu também o Prémio São Paulo de Literatura pelo romance Rebentar, lançado em 2015, e o Prémio Sesc de Literatura com o livro de contos Réveilon e outros dias, de 2012.
Dor fantasma é aquilo que o título dá a entender: uma história de dor, tanto física como emocional, que tem como protagonista Rômulo Castelo, um ilustre pianista que vê o seu mundo ruir quando perde a mão direita depois de ser atropelado por um motociclista à porta da universidade onde ensina a sua arte. Após o acidente, é-lhe amputada não só a extremidade do braço direito como toda a sua (frágil) identidade.
Rômulo é um homem profundamente atormentado, e por isso intragável, para quem os que o rodeiam são seres ineptos, sempre aquém da perfeição e da excelência – qualidades que procura incessantemente alcançar através do seu trabalho. O seu trato difícil e frequentemente agressivo começa, a pouco e pouco, a alienar todos os que lhe são mais próximos. A sua mulher, Marisa, os seus alunos e colegas vão começando a perder a tolerância com a atitude hostil do pianista, que parece ter construído um fosso entre si e tudo o que não seja o seu piano.
Até ao fatídico dia que o priva do seu instrumento de trabalho, os dias de Rômulo são quase todos iguais. Quando o despertador toca de manhã, fecha-se na sua sala de estudos, a sós com o seu Steinway para praticar o Rondeau Fantastique, a “peça intocável” do reputado pianista e compositor húngaro Franz Liszt. Rômulo é um dos melhores intérpretes do artista, e cada execução que repete da partitura é rumo a tornar-se numa espécie de “reencarnação” do compositor. O engenho que exibe foi herdado – ou incutido – pelo seu pai, George Castelo, um maestro que inculcou no filho, a par da paixão pela música, uma disciplina indefectível.
Rômulo também tem um filho, de oito anos, a quem deu o nome Franz em homenagem ao seu ídolo, mas o descendente nunca irá preservar o talento que corre nos genes dos homens da família, já que sofre de uma forma rara de paralisia cerebral. Por isso, “Franzino” apenas recebe do pai uma declarada rejeição.
De facto, o abismo começa a desenhar-se com as queixas por agressão dos seus alunos e o pedido de divórcio de Marisa. A partir daí, a descida aos infernos é ininterrupta. Não podendo fazer a tour pela Europa que tinha planeado antes de ser amputado, Rômulo deixa de ter a única razão que tinha para existir, e para que, pelo menos, o seu corpo estivesse presente, já uma espécie de 'fantasma'.
Nesta obra, as palavras seguem um encadeamento lírico, uma procede a outra, como se juntas formassem uma composição musical. Têm movimento, exaltam-se na leitura. Há uma ordem que é bela, o ritmo é compassado. A história é desconcertante. Dor fantasma é um romance sólido, pleno e arrebatador.